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Quinta-feira, Abril 25, 2024

«Justiça poética»

Maria do Céu Pires
Maria do Céu Pires
Doutorada em Filosofia. Professora.

Alguns séculos de história separam o ano de 1560 e a publicação, por Frei Domingo de Santo Tomás, da Grammatica o arte de la lengua general de los indios de los reynos del Perú e o ano de 2017 e a defesa da Tese de Doutoramento Rugido alzado en armas. Los descendientes de incas y la independência del Perú pela antropóloga Carmen Escalante. O que poderá aproximar estes dois acontecimentos?

Antes da chegada dos espanhóis, a língua indígena “quéchua” não tinha forma escrita. Os primeiros registos escritos devem-se, precisamente, a Frei Domingo de Santo Tomás. Esse idioma, embora seja falado por cerca de dez milhões de pessoas na Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru, tem pouca visibilidade oficial nesses países. Daí, a grande importância da Tese de Doutoramento da professora Carmen Escalante, descendente directa do inca Yáwar Huácaq. Não só porque o seu conteúdo se refere ao contributo dos seus antepassados, descendentes dos incas, para a independência do Peru mas, sobretudo, pelo facto de ter sido apresentada em “quéchua”.

Foi a primeira vez que, numa universidade europeia, neste caso, Universidade Pablo de Olavida em Sevilha, foi apresentada (Março de 2017) uma Tese de Doutoramento numa língua indígena. A investigação foi realizada a partir do arquivo familiar Tupa Guamanrima Ynga, que inclui informação desde 1543 até meados do século XX.

Com este e outros trabalhos anteriormente realizados, a antropóloga peruana pretende dar voz e visibilidade a uma cultura ancestral, através da recuperação das suas tradições, mitos e outros dos seus padrões culturais.

Para além da forte carga simbólica da entrada da língua “quéchua” no espaço académico da antiga colónia, este acontecimento poderá, igualmente, ser ocasião para outras transformações, quer nos antigos países colonizados, quer nos colonizadores: poderá ser o início de um processo em que mais teses em línguas indígenas possam ser apresentadas, dá, de facto, uma grande visibilidade à língua “quéchua”, pode também contribuir para a alteração da legislação universitária no Peru, onde o castelhano ainda é a única língua oficial.

A História dá numerosas voltas mas é minha convicção que, em muitos momentos, a sua linha se mistura com a da justiça. Aqui foi o caso. Como a própria Carmen Escalante referiu: falar “quéchua” na velha metrópole é uma espécie de “justiça poética” para os seus antepassados.

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