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Sábado, Abril 20, 2024

Macunaíma, a sátira trágica que é uma aula de moral e civismo

Obra-prima de Mário de Andrade não é licenciosa nem cômica. A tentativa de retirá-lo das escolas de Rondônia aponta duplo erro dos censores. Além do desejo de privar os alunos de um clássico, desconsidera-se que Macunaíma seja uma aula sobre nossos vícios sociais e políticos.

Na absurda lista de livros a serem recolhidos das escolas, elaborada pelo governo de Rondônia, figurava Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, como inadequado aos jovens leitores. Duplo erro dos censores: primeiro, por desejarem privar os jovens de uma obra-prima de nossa literatura; segundo, porque Macunaíma é uma aula de educação moral e cívica, no sentido elevado de moral e de civismo. Felizmente, a indignação provocada pelo caso fez com que o governo de Rondônia recuasse de sua decisão.

Contrariamente ao que os ignorantes pensam, Macunaíma não é uma obra licenciosa e cômica, mas, como disse o próprio autor, “uma sátira dura” e até mesmo “trágica”. As aventuras do “herói de nossa gente” podem ser por vezes engraçadas, mas a moral da história é amarga. Aliás, achar graça na malandragem também é um vício brasileiro.

Macunaíma é “o herói sem nenhum caráter”. No primeiro prefácio da obra, Mário de Andrade explicita que o termo se aplica nos dois sentidos: “Dessa falta de caráter psicológico, creio otimistamente, deriva nossa falta de caráter moral”. No segundo prefácio, reitera: “Falta de caráter no duplo sentido de indivíduo sem caráter moral e sem característico ”. E no capítulo 13, diz: “Então eles verificaram que Macunaíma era muito safado e sem caráter”.

Lembremos as ações oriundas do mau-caráter do herói, que ainda hoje são típicas de nossa realidade social e política. Em várias ocasiões, ele mente, maltrata as mulheres. É desbocado, adora um palavrão e uma ofensa à mãe do outro. Tinha até “uma coleção de palavras feias de que gostava muito”. Também gosta de se referir aos órgãos sexuais e aos orifícios ou “puítos”. Quando não tem resposta, costuma dar uma banana para os adversários.

Macunaíma é louco por dinheiro: recém-nascido, “punha os olhos em dinheiro” e “dandava para ganhar vintém”. Adulto, quer viver às custas do erário público: finge que é pintor para obter uma pensão do governo. Não tem nenhum escrúpulo, pois “deu uma chegada até a foz do rio Negro pra deixar a consciência na ilha de Marapatá”. E quando vai buscá-la, não a encontra mais.

É racista: nascido “preto retinto”, fica todo feliz quando se torna “branco louro e de olhinhos azuis” e “ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas”. Belicoso, deseja ter uma “máquina garrucha” e “vai à casa dos ingleses pedir uma smith-wesson”. Carregará sua arma até o fim da vida, como um de seus bens mais preciosos.

O herói vai para São Paulo “barganhar na Bolsa”, mas perde tudo “pelas oscilações do câmbio”. A São Paulo descrita na irônica “Carta pras Incamiabas” é bem semelhante à cidade atual: “Moram os paulistanos em palácios alterosos de cinquenta, cem a mais andares, a que, na época da procriação, invadem uma nuvem de mosquitos pernilongos” (como ainda hoje, às margens do rio Pinheiros). Nos “bairros miseráveis”, vive uma multidão de “escravos” dos ricos.

A cidade “está dotada de mui aguerrida e vultosa polícia”, e “quando o numerário dessa polícia avulta, são os seus homens enviados para as rechãs longínquas e menos férteis da pátria”. O palácio do governo “é todo de oiro, à feição dos da rainha do Adriático” e o presidente passeia em “carruagens de prata, forradas de peles finíssimas” (hoje diríamos “blindadas”). Os políticos “muito pouco têm de humanos” e “obedecem todos a um imperador chamado Papai Grande” (no Rio de Janeiro, hoje em Brasília).

O final de Macunaíma é tristíssimo. O mau comportamento habitual não apenas o leva à solidão e à doença mortal, mas profetiza o futuro dos brasileiros que seguissem o seu caminho. De início, Mário de Andrade tinha planejado um final festivo e apoteótico, junto à Torre Eiffel, algo como a “festa dos guardanapos” do ex-governador do Rio Sérgio Cabral em Paris, décadas mais tarde.

Em vez disso, o herói volta ao rio Uraricoera, na floresta amazônica, e só encontra uma tapera: “Aqueles lugares aqueles campos furos puxadouros arrastadouros meio-barrancos, aqueles matos misteriosos, tudo era a solidão e o deserto”. Ele mesmo envenena uma lagoa e mata todos os peixes.

Os filhos da tribo dos tapanhumas “se acabaram de um em um”, os animais “morreram de pavor e a própria natureza desmaiara e caíra num gesto largado por aí’. A região do Uraricoera, em Roraima, foi demarcada por decreto em 1998, mas é atualmente uma área de garimpo ilegal, que destrói a floresta e ameaça os indígenas.

“Então Macunaíma não achou mais graça nesta terra. […] Tudo o que fora a existência dele apesar de tantos casos tanta brincadeira tanta ilusão tanto sofrimento, tanto heroísmo, afinal não fora senão um se deixar viver; […] E ele não tinha coragem pra uma organização”.

Nas Notas Diárias publicadas em Mensagem, quinzenário de literatura e arte (Belo Horizonte, 24/07/43), Mário de Andrade comenta: “Ainda consegue voltar à praia, mas é um frangalho de homem. Como agora? Sem uma perna, sem isto e mais aquilo e sem principalmente a muiraquitã que lhe dá razão-de-ser, poderá se organizar, se reorganizar numa vida legítima e funcional?… Não tem mais possibilidade disso”.

Em carta a Fernando Sabino (16/02/42), disse o autor: “O que posso lhe jurar é que Macunaíma foi detestavelmente doloroso para mim. Nos momentos mais anedóticos, mas engraçados do entrecho, eu não deixava de sofrer pelo meu herói, sofrer a falta de organização moral dele (do brasileiro, que ele satiriza), de reprovar o que ele estava fazendo contra a minha vontade. E quando no fim Macunaíma, no ponto de se regenerar, fraqueja mais uma vez e prefere ir viver o brilho ‘inútil’ das estrelas, meus olhos se encheram de lágrimas. Se encheram e se encherão sempre”.

No segundo prefácio, dizia ele: “Nas épocas de transição social como a de agora, é duro o compromisso com o que tem de vir e quase ninguém não sabe. Eu não sei. Não desejo a volta do passado e, por isso, já não posso tirar dele uma fábula normativa. Por outro lado, o jeito de Jeremias me parece ineficiente. O presente é uma neblina vasta”. Infelizmente, a neblina de 1928 se transformou nas trevas em que estamos agora. Quando teremos uma vida organizada, “legítima e funcional”?


por Leyla Perrone-Moisés, Doutora em Língua e Literatura Francesa, é autora do livro Lautréamont Austral  |  Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

 

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