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Sexta-feira, Março 29, 2024

“Mulheres do meu país”

Maria do Céu Pires
Maria do Céu Pires
Doutorada em Filosofia. Professora.

Mulheres do meu país[1]

“Este livro, realizado na fase mais tomentosa da minha vida, reflecte o meu grande sonho de um mundo mais harmonioso e iluminado de fraternal amor (…)”.

É desta forma que, em 1948, Maria Lamas se dirige a todas as mulheres portuguesas a quem dedica o seu livro “As mulheres do meu país”. Esta monumental obra surge na sequência da publicação, em fascículos, de pequenas “reportagens” sobre o quotidiano de algumas mulheres, na “Modas e Bordados”, suplemento do Jornal “O Século”, de que era Directora. Resultou de uma apurada investigação que envolveu inúmeras viagens por várias regiões do país, do litoral ao interior, de Norte a Sul. Hoje, a 70 anos de distância, apesar das diferenças de linguagem e de estilo, esta pesquisa mantém pleno valor antropológico, histórico e também político.

Maria Lamas, jornalista, tradutora e escritora foi, igualmente, uma etnógrafa mas com profundo sentido universalista. Este seu trabalho embora dê conta da situação das mulheres, camponesas, operárias, intelectuais, artistas, na primeira metade do século XX, está imbuído, igualmente, de um sentido universal pois os rostos, as histórias e toda a descrição sociológica e vivencial que apresenta pode ser entendida como testemunho de humanidade.

Maria Lamas nasceu em Torres Vedras, em 1893 e foi responsável pela organização do certame “Mulheres portuguesas. Exposição da Obra Feminina, antiga e moderna, de carácter literário, artístico e científico”, realizado em 1934. A propósito desta exposição que ocupava 11 salas das instalações de “O Século”, disse Maria Antónia Fiadeiro, sua biógrafa: “Uma das narrativas do feminismo português é a reivindicação intelectual e esta exposição, entre outras, é uma prova disso. Há permanentemente uma reivindicação intelectual. Não era só o direito a voto, não era só direito de autor. Era dar visibilidade ao trabalho das mulheres, de norte a sul”. Também por essa época, Maria Lamas organizou a Exposição de Tapetes de Arraiolos feitos por mulheres que se encontravam na Cadeia das Mónicas.

Trabalhou em diversos jornais e revistas: O Almonda, A Voz, A Joaninha e deixou vasta obra, nomeadamente no âmbito da literatura infantil. A sua primeira publicação é de poesia, “Humildes”, e data de 1923 e a última de mitologia grega e romana: “O mundo dos deuses e dos heróis, Mitologia Geral”. No domínio da tradução, é de salientar a tradução de “Memórias de Adriano” de Marguerite Yourcenar.

O interesse pela situação das mulheres em Portugal, nomeadamente as que viviam com maiores dificuldades, foi uma constante da sua vida. Em 1946 participou no Congresso Internacional que esteve na origem da Federação Democrática Internacional das Mulheres e foi, por essa época, eleita Presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (que Salazar fechou em 1947). A luta pelos direitos das mulheres e pela exigência de cidadania era parte integrante do seu combate contra a ditadura salazarista. Por isso, por assumir a vida com liberdade e com coragem, foi presa várias vezes, em 1949 e, posteriormente em 1953 e 1962. Esteve exilada em Paris entre 1962 e 1969.

Em 1936 e nos anos seguintes desenvolve uma intensa actividade em defesa da Paz, denunciando a guerra civil espanhola o que a leva a promover o “Manifesto das Mulheres portuguesas contra a guerra”, e a organizar várias Conferências sobre a Paz no Porto e em Lisboa, na sequência das quais surge a Comissão Nacional pela Paz que agregou a maior parte da oposição à ditadura. Participou, também, em vários Congressos Mundiais pela Paz, nomeadamente o que se realizou em Ceilão, em 1957.

Já depois da revolução, em 1975, foi Presidente honorária do Movimento Democrático de Mulheres. Todo o seu percurso de vida é ímpar, caracterizado pela constante intervenção cívica, cultural e humanista. É um exemplo que nos deve inspirar e orientar na demanda do equilíbrio entre a utopia e a realidade, no caminho da fraternidade e da igualdade. Com uma enorme ternura, como as palavras da sua neta Maria Benedicta tão bem revelam: “Por isso me ficou também a mim, avó, a tua imagem como peregrina-solidária. Sempre a partir e sempre tão perto. Sempre tão pessoa e sempre tão parte de um colectivo em que te fundias, em que te revias, pelo qual sentias uma infinita ternura, e a que chamaste “metade da humanidade” – as mulheres”[2]

[1] LAMAS, Maria, As mulheres do meu país, Lisboa, Editorial Caminho, 2002.

[2] Idem, XXI.

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