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João de Sousa

Sábado, Abril 27, 2024

Negócios iranianos

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A administração Biden está a processar a transferência de seis mil milhões de dólares norte-americanos para a República Islâmica do Irão, como resgate de reféns americanos, que serão disponibilizados através do Qatar.

Os negócios americanos com o regime clerical iraniano (envolvendo reféns, mas não se limitando a eles) não têm conta, e o seu começo foi simultâneo da revolução islâmica iraniana, não se interrompendo mesmo quando há confrontações e sanções entre os dois Estados.

Na verdade, os negócios não são apenas americanos, são generalizados. O último em perspectiva envolve um funcionário europeu de nacionalidade sueca que o regime iraniano pretende trocar por um dos carrascos pela participação no massacre de dezenas de milhares de oposicionistas iranianos de 1988, preso na Suécia.

Como lembrou um dos reféns agora libertados: ‘Nos últimos 44 anos, o regime iraniano dominou o jogo vicioso de prender americanos e outros cidadãos estrangeiros inocentes para negociar a sua libertação. A prisão de Evin tornou-se uma espécie de ONU distópica de reféns, se mantivermos aberto este abjeto caminho para o lucro, sem riscos ou portagens, este regime venal vai continuar a segui-lo.’

Por outras palavras, o principal incentivo para que o regime iraniano continue a usar reféns para os seus negócios é a forma como o Ocidente tem, de forma de tão repetida que se tornou previsível, pago sempre o que lhe é pedido, sem que o regime sofra consequências pela sua acção.

Isto é de tal forma óbvio que não é possível a ninguém deixar de entender que o Ocidente está a ser cúmplice deste escabroso negócio de reféns e é, portanto, responsável pela sua continuação e repetição.

Há décadas que tenho reflectido sobre a razão pela qual o Ocidente tem feito quase tudo o que o Irão pretende, nomeadamente no que denominei em título de livro, publicado em 2008, a invasão escondida do Iraque, por outras palavras, a forma como o Ocidente se prestou a camuflar a invasão iraniana do Iraque.

Já depois de publicar o livro, novas revelações vieram reforçar o argumento, mostrando um grau de colaboração do Ocidente com os guardas revolucionários islâmicos mais pronunciado ainda do que eu tinha imaginado.

Num relatório que publiquei em 2016, centrado no negócio nuclear desse ano, o foco é feito sobre a ‘Câmara de Eco’ (expressão usada pelo funcionário da Administração Obama que geriu a operação de desinformação para se referir à imprensa), ou seja, como a principal imprensa institucional internacional foi mobilizada para vender uma pseudo limitação das ambições nucleares iranianas.

No livro de que fui o principal editor em 2017, dou uma ênfase especial à psicopatia social vulgarmente designada como de ‘apaziguamento’ e também conhecida como síndroma de Estocolmo.

Os negócios, reais ou presumidos, os interesses políticos imediatos – a equipa de Ronald Reagan foi capaz de negociar a libertação dos reféns da sua Embaixada para o dia da tomada de posse do Presidente – são elementos que tiveram uma grande importância. A invasão do Iraque jogou a fundo no tabuleiro petrolífero, embora não da forma como foi primitivamente imaginado.

No negócio irano-americano que agora se consagra, o Qatar é seguramente o elemento decisivo, mas é provável que existam também negócios mais personalizados.

A recente onda negocial irano-americana teve no acordo irano-belga para a libertação do diplomata-terrorista Assadi, a que me referi no jornal Tornado, o seu prelúdio mais importante. O que me chamou mais a atenção nesta negociação, e que se soube através da penetração pela oposição no site oficial da diplomacia iraniana, foi que as negociações foram dirigidas pelo Ministro da Justiça belga, dias apenas após ter tomado posse, em Outubro de 2020, muito antes de Vandecasteele ter viajado para o Irão e ter sido feito refém.

Ou seja, como disse então, ‘o Tratado não só não foi uma resposta ao rapto do refém belga, mas como pelo contrário, o rapto do refém foi a consequência da vontade expressa pelo governo belga de vir a libertar o terrorista’.

O Ministro mentiu descaradamente, e a opinião pública nunca colocou a questão como deveria ter colocado, responsabilizando o Ministro e o Governo belga não só pela libertação do terrorista, mas também pela tomada do refém pelo Irão.

A cidade de que o Ministro da Justiça é o Presidente da Câmara (essa simultaneidade de funções não é permitida em Portugal mas é assaz frequente na Bélgica) foi de resto a que mais se distinguiu na estridente campanha pela libertação do refém (eufemismo para referir a libertação do terrorista).

O facto de o Ministro da Justiça belga ter feito chegar a Teerão uma proposta de ‘tratado internacional’ para libertar o diplomata/terrorista belga condenado pela justiça belga apenas alguns dias após ter tomado posse faz suspeitar que, para além das coordenações internacionais que certamente foram necessárias para um tal acordo (lembremos que o acto terrorista falhado tinha Paris como alvo e que o seu principal autor foi preso na Alemanha), exista um envolvimento pessoal na negociação.

Lembremos que a libertação do terrorista foi primeiro suspensa pela justiça belga em julho de 2022. Pouco depois, em Setembro, a imprensa dá conta de uma rocambolesca tentativa de rapto do Ministro da Justiça belga que resultou na apreensão de um veículo estacionado junto da sua residência e a prisão de quatro pessoas nos Países Baixos, alegadamente envolvidas em operações relativas a droga.

A imprensa relaciona o dito atentado com outros tratados internacionais que o Ministro estaria a negociar relativos a tráfico de droga, tendo também noticiado que o Ministro e a família teriam sido colocados em vigilância policial reforçada e que a Bélgica pediu a extradição dos quatro presos nos Países Baixos, extradição que ainda não se teria materializado.

Curiosamente, ninguém se terá lembrado de relacionar esta operação com o facto de o regime iraniano ter sido inculpado pelas autoridades dos Países Baixos pelo assassínio de dois dissidentes iranianos, assassínios que encomendou às redes criminais do país envolvidas no tráfico de drogas.

Tão pouco, ninguém parece ter ficado surpreendido pela falta de cuidado dos presumíveis raptores ao abandonar um veículo com todas as provas incriminatórias ao pé da residência do Ministro. Mais ainda, é curioso que o veículo policial destinado à segurança reforçada do Ministro permanecesse abandonado junto da sua residência, como se ficou a saber na sequência de um novo escândalo envolvendo o Ministro no passado mês de agosto.

Semanas depois do escândalo, e depois de o Ministro ter prometido a denúncia pública dos seus convidados que teriam urinado em cima do veículo policial abandonado, continua sem se saber quem eles eram ou ainda por que razão se encontrava o dito veículo policial abandonado à porta da sua residência, e por que razão os tais carteis da droga, que procurariam a cabeça do ministro antes da libertação do diplomata terrorista, já não parecerem zangados com ele depois de este ser libertado.

A falta de curiosidade e persistência em esclarecer a verdade e a aparente falta de memória que parece dominar a opinião pública são talvez o mais preocupante dos indicadores da cumplicidade com que conta a actividade criminosa do regime iraniano entre nós.

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