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João de Sousa

Sábado, Abril 27, 2024

O Bangladesh, cinquenta e dois anos depois

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.
By Ministry of Liberation War Affairs – scanned from the original, CC0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=94859965

Foi no dia 16 de dezembro de 1971 que as forças militares paquistanesas apresentaram a sua rendição ao general indiano Aurora marcando assim o nascimento de uma nova nação no subcontinente indiano.

Pelo caminho terão ficado cerca de três milhões de vítimas de um genocídio levado a cabo pelos militares em colaboração com as milícias islamistas que tinha o duplo objectivo de eliminar a intelectualidade bengali unida na preservação da língua, cultura e história bengali e as minorias religiosas não islâmicas – especialmente a hindu –  presentes no país.

A partição da Índia britânica num Estado confessional muçulmano e um Estado laico de maioria Hindu em 1947 foi uma imensa tragédia para o subcontinente, traduzida no imediato em monumentais massacres e limpezas étnicas que resultaram em cerca de um milhão de vítimas e numa das mais potentes molas do integrismo islâmico cuja ameaça à humanidade não deixou de crescer desde então.

O Paquistão evoluiu rapidamente para um modelo militar islamista onde, entre outras barbaridades, se fez do Urdu – língua baseada no Hindi com fortes influências das línguas dos colonizadores muçulmanos, usada por elites muçulmanas e apoiada pelo colonizador britânico – a única língua oficial do país, abolindo, nomeadamente, o bengali, língua quase exclusiva no Paquistão Oriental.

By Unknown author – http://www.geocities.com/smujib1/ (Another source: http://chandrakantha.com/articles/indian_music/filmi_sangeet/film_song_1975.html), Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=9493346

As primeiras eleições democráticas do país, realizadas apenas em 1970, resultaram na vitória por maioria absoluta da Liga Awami de Mujibur Rahman que tinha como principal ponto programático a consagração da língua bengali, e foi como resposta a essa vitória que os militares em aliança com os fanáticos islamistas desencadearam o genocídio.

A diplomacia de Henri Kissinger que, em conivência com a China, tudo fez para apoiar o genocídio, viria memoravelmente a declarar o novel país como um ‘caso perdido’, e durante bastante tempo os factos pareciam dar-lhe razão. O país enfrentou instabilidade política e caos económico. Em 1975, Mujibur Rahman e toda a sua família foram assassinados (salvaram-se os ausentes, como a sua filha na altura em Londres e hoje a Primeiro-Ministro do país) sucedendo-se períodos de governo militar cortando algumas experiências democráticas.

No princípio do século o Bangladesh conheceu um governo dominado pelo BNP – Partido Nacional do Bangladesh – partido conservador que tem as suas raízes num período de dominação militar e tem os islamistas como aliados tradicionais. O país tinha-se tornado, à imagem do Paquistão, num centro de organizações armadas jihadistas.

Como assinalava numa análise publicada em maio de 2009 um dos principais especialistas do terrorismo no Bangladesh, Paul Cochrane, a explosão a 17 de agosto de 2005 quase simultânea (num intervalo de 7 minutos) de 459 bombas em 63 dos 64 distritos do país foi um símbolo maior da capacidade terrorista.

O Governo que começou por usar a habitual mantra de que se tratava de atentados perpetrados pela Índia e Israel, acabou por admitir que não conseguia dominar a pletora de grupos jihadistas que proliferavam no país e que semeavam o terror dentro e fora de fronteiras. De acordo com o sistema que continua a vigorar no Paquistão, o chamado ‘caretaker government’, um governo provisório supostamente técnico que tem como missão exclusiva apenas preparar eleições, o governo BNP, ao terminar o seu mandato em 2006 foi substituído por um governo provisório.

Este, em vez de preparar as eleições em três meses, ficou dois anos no poder e só a custo permitiu eleições de que saiu vitoriosa em 2008 a Liga Awami dirigida pela Sheik Hasina (a filha sobrevivente do fundador do país). O governo foi confrontado, quase de imediato, em 2009, com um golpe militar que conseguiu, no entanto, derrotar.

A 7 de janeiro de 2024 vão-se realizar as quartas eleições desde 2008, com a Awami League no governo.

Nestes quinze anos, a Awami League conseguiu progressos enormes no país. Conseguiu finalmente julgar e sentenciar alguns dos principais responsáveis pelo genocídio islamista de 1971, que eram simultaneamente figuras maiores do integrismo islâmico internacional, conseguiu derrotar e pulverizar a generalidade dos grupos terroristas, laicizou a Constituição, começando uma política activa de protecção da mulher, promoveu um notável crescimento económico, acolheu mais de um milhão de refugiados da Birmânia e preservou o essencial de um regime democrático.

Entre as rosas, há também espinhos. As autoridades contemporizaram com militares e islamistas, cometeram-se abusos, não se conseguiu ultrapassar a cultura de violência política e desenvolveram-se os vícios típicos das longas permanências no poder.

O integrismo islâmico declarou guerra ao país, sendo para mim óbvio que depois da instalação dos Taliban no Afeganistão o seu mais importante objectivo para a Ásia do Sul é a reintrodução do integrismo islâmico no Bangladesh.

O Ocidente continua perdido na sua deriva wokista manipulada pelo islamismo e tem-se limitado a apoiar a agenda islamista financiada pelo Qatar que quer ver o Bangladesh reconduzido de novo aos caminhos do integrismo islâmico.

A incompatibilidade do islamismo com um sistema humanista e democrático foi demonstrada vezes sem conta nas últimas décadas e não é preciso fazer qualquer experiência no Bangladesh para voltar a confirmá-lo.

O caminho a percorrer começa pela denúncia e isolamento das redes islamistas dirigidas a partir do Qatar e do Irão e a construção de uma plataforma que assente no secularismo, entendido como a aceitação de toda a religião na medida em que toda a religião aceite não ser seguida por todos, no Estado de direito, nas regras democráticas e no humanismo.

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