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Terça-feira, Março 19, 2024

O Cerrado é a matriz biológica da América do Sul

Adrienne Savazoni Morelato, de São Paulo
Adrienne Savazoni Morelato, de São Paulo
Mestre e doutora em Estudos Literários pela Unesp, é professora da rede estadual de São Paulo e poeta

Muito se fala da Amazônia internacionalmente, mas pouco se sabe que sem o Cerrado, a Amazônia não sobrevive. O Cerrado, esse bioma que muitos consideram feio por uma visão totalmente equivocada de beleza, fruto de uma concepção ambiental colonizada que privilegia a floresta em detrimento dos campos abertos, é o ecossistema mais fundamental para o abastecimento hídrico da América do Sul. Ele é chamado de caixa d’ água e não é por acaso.

São 65 milhões de anos de evolução da mais antiga formação vegetal do planeta! Uma vegetação que se adaptou a um solo pobre em nutrientes e que conseguiu perfurar com suas raízes mais de 50 metros de sedimentações profundas e esponjosas, levando a essas rochas porosas, água em abundância e criando grandes aquíferos. As raízes de toda vegetação do Cerrado são extremamente complexas, capazes de criarem um outro ecossistema subterrâneo, organizado e profundo que capta a água da chuva e a deposita nos lençóis freáticos e nos aquíferos. Por isso ele é chamado de floresta invertida, porque dois terços da planta estão abaixo do solo.

E é por essa capacidade que as três maiores bacias hidrográficas do continente nascem no Cerrado. Os grandes afluentes do lado direito do Amazonas como o Xingu, Madeira e Tapajós e rios importantes de sua bacia como o Araguaia e Tocantins.

Outra bacia que depende totalmente do Cerrado é a do Rio São Francisco que leva água ao sertão nordestino. As áreas mais castigadas do semiárido dependem dessas águas, como o Saara depende do Nilo. Destruir o Cerrado é acabar com o abastecimento e a possibilidade de vida de uma população que já sofre com a falta de chuva.

A bacia do Rio Paraná que abastece o Sudeste não apenas com água, mas com energia, depende totalmente das águas do Cerrado. Além de ficar sem água para as coisas básicas, o Brasil corre o risco de ficar no escuro também.

A bacia do Rio Paraguai, a que vai abastecer o Pantanal e o Paraguai depende totalmente dos rios que nascem no Cerrado. É por causa da destruição desse bioma que hoje o Pantanal sofre com seca e incêndios, e seus animais morrem de sede.

Neste sentido, percebe-se que as bacias hidrográficas da Amazônia, Paraguai- Paraná e São Francisco, as que vão alimentar os ecossistemas da Amazônia, o Pantanal (este um subsistema do Cerrado) e a Mata Atlântica são oriundas do Cerrado, o qual cobre 30 por cento do território brasileiro, se tornando o segundo bioma em extensão.

Pela legislação, os proprietários de terra no Cerrado devem deixar de mata nativa 20 por cento de sua propriedade, enquanto na Floresta Amazônica esses dados se invertem: 80 por cento de proteção e 20 por cento de desmatamento. Contudo, boa parte do que se chama hoje no Brasil de Amazônia Legal, uma área concebida mais com fins políticos do que biológicos, é Cerrado. Por isso, principalmente nas áreas de transição entre os dois biomas, o agronegócio utiliza a lei dos 20 por cento de área preservada de Cerrado para desmatar também a floresta amazônica. Neste sentido, a luta pela preservação do Cerrado é fundamental para a preservação daquela que é considerada a maior floresta tropical do planeta.

Em relação à flora e fauna, o Cerrado detém a maior diversidade florística do mundo: são 12. 365 plantas catalogadas e os pesquisadores dizem que a cada ida a campo, 50 novas espécies são descobertas e que muitas estão sendo extintas sem ao menos o ser humano conhecer suas potencialidades.

Cagaita é pequena e saborosa, pode gerar renda para quem vive da terra

Pertence a esse ecossistema a maior variedade de flores, ervas e frutos comestíveis que se têm notícia, e sua capacidade farmacológica é imensa. Uma fruta como a cagaita por exemplo dá semente, polpa de fruta, suco, faz doce, chá, mousse, bolo, geléia etc. Ela é rica em antioxidantes e vitamina C e pode gerar renda a pequenos agricultores do país. Outra fruta do Cerrado pouco explorada é a mama cadela com alto potencial curativo para lesões de diabéticos e vitiligo e com sua polpa carnosa e doce, a fruta pode ser aproveitada na confeitaria como um todo.

Mama cadela tem a polpa docinha

Uma peculiaridade do Cerrado é a simbiose criada entre fauna e flora. Há espécies de flores e plantas que dependem de um animal para quebrar a dormência de suas sementes, como o Araticum precisa que sua semente passe pelo intestino delgado do lobo-guará para poder germinar. Outras já desenvolveram formas peculiares que atraem determinado tipo de inseto polinizador ou mamífero como a árvore do jatobá que é polinizada por morcegos.

Deve-se compreender que o Cerrado funciona diferente de uma floresta, como já foi dito, a parte subterrânea é extremamente complexa, além de absorver água, ela retém nutrientes que irão alimentar a planta durante os períodos de seca. Como diz o pesquisador Djalma Rosa, “o que você enxerga é só o cabelo da planta, todo o sistema de vida dela se desenvolve embaixo do solo”. Isto porque o solo do Cerrado é considerado pobre e ácido, mas possibilitou o surgimento de uma vegetação adaptada e resistente, inclusive que sobrevive ao fogo e que o utiliza para quebrar a dormência da maioria de suas espécies.

Para o professor dr. Altair Sales da Unisinos, grande pesquisador sobre este bioma, a vegetação do Cerrado é a que mais sequestra carbono da atmosfera, pois como o seu solo é pobre, ela se alimenta praticamente do gás carbono que está no ar. Por essa razão, quem quer lutar pelo Cerrado precisa abandonar velhas concepções e olhares ao meio ambiente, um olhar que enxerga capim e arbustos apenas como mato que deve ser arrancado a qualquer custo. No Cerrado, os capins, as ervas e os arbustos são essenciais para manutenção de todo ciclo biológico.

Parque Estadual do Juquery é o último remanescente de Cerrado da Grande São Paulo

Hoje a grande ameaça a este bioma é o agronegócio brasileiro com seu uso extensivo da monocultura. Infelizmente, o Cerrado não foi contemplado como Patrimônio Nacional na Constituição, exatamente para que nele se expandissem as fronteiras agrícolas, contudo, está se trocando uma riqueza imensurável por duas ou três culturas anuais para gerar commodities.

Parque Estadual do Juquery

Os latifundiários do agronegócio, do AGRO é FOME, AGRO é Destruição, AGRO é SECA, AGRO é Deserto, não respeitam margens de rios, campos e florestas, destroem tudo e depois, quando não conseguem mais tirar da terra que vilipendiam, vão embora largando tudo destruído, abandonado, seco e desertificado. Vão para outras áreas ainda preservadas destruir.

Se a escravidão constitui na maior vergonha da história brasileira, o fato de não termos feito a Reforma Agrária significa que a escravidão ainda sobrevive nessa terra e que não foi exatamente extinta. Só a Reforma Agrária poderá dar justiça social, preservar o Cerrado e garantir a sobrevivência das futuras gerações. Porque quem corre risco mesmo de se extinguir não é o Cerrado, mas o ser humano que dele depende.

 

Documentário SERTÃO VELHO CERRADO português

 

Ser Tão Velho Cerrado

40 milhões de anos em um filme. Este documentário é uma grande campanha em defesa do Cerrado que sofre com desmatamentos recordes levando um ecossistema inteiro à extinção. Preocupados, moradores da Chapada dos Veadeiros se juntam para a elaboração de um plano de manejo que os desafia a conciliar interesses aparentemente incompatíveis, abrindo um diálogo necessário entre a comunidade científica, agricultores familiares, grandes proprietários de terra e defensores do meio ambiente


Texto original em português do Brasil

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