Por três décadas, liberais italianos promoveram governos neoliberais tecnocráticos sem mandato popular. O efeito é esvaziar a democracia e alienar a centro-esquerda de sua antiga base na classe trabalhadora.
Entre os muitos tópicos aos quais Karl Marx devotou seu interesse, um do menos conhecidos é sua crítica do assim chamado “governo técnico” – isso é, governos liderados por supostos “experts” não filiados com partidos políticos. Como contribuidor do New York Tribune, um dos diários de maior circulação de seu tempo, Marx observou os desenvolvimentos institucionais que levaram a um dos primeiros governos assim na história: o gabinete do Conde de Aberdeen, na Grã-Bretanha, de dezembro de 1852 a janeiro de 1855.
As reportagens de Marx se destacaram por sua acuidade e sarcasmo. O Times celebrou esses eventos como um sinal de que a Grã-Bretanha estava no começo de um tempo “no qual o espírito de partido está a voar da terra, e genialidade, experiência, indústria e patriotismo estão a ser as únicas qualificações para o cargo.” O diário baseado em Londres chamou “homens de todas as classes de opinião” para apoiar o novo governo, porque “seus princípios exigem o consentimento e apoio universal.”
Argumentos parecidos foram usados em fevereiro de 2021, quando Mario Draghi se tornou o Primeiro Ministro da Itália. A fanfarra em torno de Draghi, que tinha sido governador do Banco da Itália, de 2006 a 2011, e presidente do Banco Central Europeu, de 2011 a 2019, foi parecida com a do Times, em 1852. Todos os órgãos de imprensa conservadores e liberais, incluindo os da esquerda moderada, se juntaram em uma cruzada contra os partidos políticos irresponsáveis e a favor do “salvador” Draghi. Com sua renúncia na quinta-feira, o experimento chegou ao fim mais uma vez.
No artigo de 1853, “Uma Administração Obsoleta: Perspectiva do Ministério de Coalizão,” Marx zomba do ponto de vista do Times. O que o principal jornal britânico achou tão moderno e fascinante foi, para ele, pura farsa. Quando o Times anunciou “um ministério composto inteiramente por personagens novos, jovens e promissores,” Marx pensou isso.
Ao lado dos julgamentos sobre indivíduos havia outros, de maior interesse, a respeito de suas políticas: “Nos é prometido o total desaparecimento da guerra partidária, até mesmo dos próprios partidos,” Marx observou. “Qual é o significado do Times?”
Infelizmente a questão é toda muito atual hoje, em um mundo onde o governo do capital sobre o trabalho se tornou tão selvagem quanto era no meio do século XIX. A separação entre economia e política, que diferencia o capitalismo dos modos anteriores de produção, chegou a um ponto alto. A economia não apenas domina a política, definindo sua agenda e moldando suas decisões, mas se encontra fora de sua jurisdição e controle democrático – a um ponto em que uma mudança de governo não muda mais as direções das políticas econômicas e sociais. Elas devem ser imutáveis.
“Imperativos” Econômicos
Nos últimos trinta anos, os poderes de tomar decisões passaram da esfera política para a econômica. Opções de políticas partidárias se tornaram em imperativos econômicos que disfarçam um projeto reacionário, disfarçado de expertise apolítica. Esse desvio de partes da esfera política para a economia, como um domínio separado impermeável a mudanças, envolve a mais grave ameaça à democracia em nossos tempos. Parlamentos nacionais, já drenados de valor representativo por sistemas eleitorais distorcidos e revisões autoritárias da relação entre executivo e legislativo, encontram seus poderes tomados e transferidos para o “mercado”.
Avaliações da Standard & Poor, o índice de Wall Street, e o spread do bid-ask – esses mega fetiches da sociedade contemporânea – trazem incomparavelmente mais peso do que a vontade das pessoas. Na melhor das hipóteses, os governos podem “intervir” na economia (às vezes, as classes dominantes precisam mitigar a anarquia destrutiva do capitalismo e suas crises violentas), mas eles não podem pôr em dúvida suas regras e escolhas fundamentais.
De fevereiro de 2021 até a sua renúncia na última quinta-feira, Draghi foi um proeminente representante dessa política. Por dezassete meses, ele liderou uma coalisão muito ampla incluindo o centrista Partido Democrata, seu inimigo de longa data Silvio Berlusconi, os populistas do Movimento Cinco Estrelas e a Lega de extrema direita de Matteo Salvini. Por trás da fachada do termo “governo técnico” – ou, como eles dizem o “governo dos melhores” – nós podemos ver uma suspensão da política.
Esse fenômeno não é novo na Itália. Desde o fim da Primeira República, no início dos anos de 1990, houve vários governos com liderança “técnica” ou sem representantes de partidos políticos. Isso inclui o governo de Carlo Azeglio Ciampi, anteriormente governador do Banco da Itália por quinze anos, de 1993 a 1994 (e subsequentemente eleito ao cargo de Presidente da Itália, de 1999 a 2006); o governo de Lamberto Dini, ex-diretor geral do Banco da Itália, depois de uma longa carreira no Fundo Monetário Internacional, em 1995-96; e o governo de Mario Monti, o ex-Comissário Europeu da Concorrência, com relevante experiência anterior na Comissão Trilateral do Grupo Rockefeller, o comitê de direção do Grupo Bilderberg, e como conselheiro internacional para o Goldman Sachs, de 2011 a 2013.
Nos anos recentes, foi argumentado que novas eleições não devem ser concedidas depois de uma crise política; a política deve entregar total controle para a economia. Em um artigo de abril de 1853, “Conquistas do Ministério,” Marx escreveu que “o Ministério de Coalisão [‘técnico’] representa a impotência no poder político.” Os governos não discutem mais que orientação econômica tomar. Agora as orientações econômicas dominantes provocam o nascimento de governos.
Na Europa nos anos recentes, o mantra neoliberal foi repetido que para restaurar a “confiança” do mercado era necessário avançar rapidamente pela estrada das “reformas estruturais” – uma expressão agora usada como um sinônimo para a devastação social: em outras palavras, cortes de salários, ataques em direitos dos trabalhadores sobre contratações e demissões, aumentos nas idades de aposentadorias, e privatizações em larga escala. Os novos “governos técnicos,” liderados por indivíduos com uma experiência em algumas das instituições econômicas mais responsáveis pela crise econômica, seguiram esse caminho – alegando fazer isso “pelo bem do país” e “pelo bem-estar das gerações futuras.” Além disso, os poderes econômicos e a grande mídia tentaram silenciar qualquer um que levantasse uma voz discordante.
Após sua renúncia, Draghi não deve mais ser o Primeiro Ministro da Itália. Sua maioria implodiu por causa das políticas muito diferentes dos partidos que o apoiavam, e a Itália vai para eleições antecipadas em 25 de setembro. Se a esquerda não desaparecer, ela deve também ter a coragem de propor as políticas radicais necessárias para abordar as questões contemporâneas mais urgentes, começando da crise ecológica. As últimas pessoas que poderiam realizar um programa social de transformação e redistribuição de riqueza são os “técnicos” – na verdade figuras muito políticas – como o banqueiro central Mario Draghi. Ele não vai fazer falta.
por Marcello Musto (de Fonte: Jacobin), Autor de: “Another Marx: Early Manuscripts to the International” e “The Last Years of Karl Marx: An Intellectual Biography” | Texto em português do Brasil, com tradução de Luciana Cristina Ruy
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