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Domingo, Setembro 8, 2024

Superior: quadros de dotação global com quotas externas

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Depois um primeiro ensaio – criação nas instituições de ensino superior de concursos só para professores “da casa” com mais de 10 anos na categoria (ver artigo publicado no Jornal Tornado de 6 de Novembro de 2019 “Como o herdeiro de Mariano Gago deixa abandalhar a carreira universitária”) – o referido herdeiro de Mariano Gago propõe-se agora inverter o mecanismo de acesso a categorias de carreira criado por aquele de quem foi Ministro: da total abertura dos concursos a candidatos externos à promoção sem concurso ou pelo menos sem necessidade de confrontar candidatos externos à instituição. Com o mesmo argumento: o de que a admissão de um candidato externo vai dificultar o pagamento aos professores já ao serviço.

Percebo que aquele a quem já chamam “Manuel Reitor” seja sensível a preocupações típicas dos reitores das universidades periféricas e dos presidentes dos institutos politécnicos(i). Já a aparente concordância das universidades mais antigas e de maior dimensão parece um tanto surpreendente.

 

Uma carreira com crescente complexidade

Como recordei no artigo anteriormente inserido houve tempos em que a carreira era muito simples: quem se havia formado com nota elevada podia prestar provas de doutoramento, ser convidado para Assistente, se houvesse lugares no respectivo quadro, e mais tarde provas públicas para Professor. Era-se a partir daí Professor Ordinário (mais tarde, Catedrático) ou Extraordinário. A certa altura os Assistentes com Doutoramento passaram a ser Primeiros Assistentes (e com Veiga Simão, a partir de 1970, Professores Auxiliares). O crescimento do corpo de doutores formados por universidades portuguesas ou estrangeiras e em geral o do número de docentes nas universidades antigas ou novas, acabaria por levar à publicação em 1979 sob o governo Pintasilgo(ii) de um Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU) que formalmente está ainda em vigor apesar de numerosas modificações (resultantes ou não de introdução de alterações no próprio texto), de uma grande revisão em 2009 – a de Mariano Gago, que não quis que se falasse da aprovação de um “Novo ECDU – corrigida por uma apreciação parlamentar em 2010 e por normas complementares sobre o regime transitório dos Leitores.

O Estatuto originário de 1979 fundia as categorias de Professor Catedrático e Extraordinário numa única categoria de Professor Catedrático , o que fazia sentido porque as provas de acesso tinham sido as mesmas. A maioria parlamentar de direita e alguns sectores da universidade gritaram contra as “passagens administrativas”. Criou-se como segunda categoria a de Professor Associado, prevendo-se a transição dos Professores Auxiliares para Professores Associados. A mesma reacção. Mantinha-se uma categoria de Professor Auxiliar provida por contrato para os novos doutorados, e aí a mesma ratificação parlamentar que fez depender de análise caso a caso as “passagens administrativas” optou por um mecanismo sui generis de estabilidade, denominando de nomeação provisória o contrato inicial, e prevendo a sua conversão em “nomeação definitiva” sem lugar de quadro.

Não se pode dizer que a carreira docente universitária daí resultante não fosse uma carreira aberta- e omito a parte da carreira relativa às categorias de assistente e assistente estagiário – já que o acesso às duas categorias superiores da carreira , ou seja, catedrático e associado, não dependia da titularidade de um lugar em categoria inferior, sendo que o concurso para professor associado exigia o doutoramento e cinco anos de efectivo serviço docente universitário, que podia ter sido feito pré-doutoramento. Alguns dos interessados concorreram das universidades sediadas nos centros tradicionais para as universidades periféricas ascendendo rapidamente a lugares de topo nestas últimas. Outros foram tentando aceder a vagas nas suas universidades de origem, e, ainda que não o conseguissem de imediato, o sistema de escalões aprovado em 1989 com o chamado Novo Sistema Retributivo, de Cavaco Silva e Isabel Corte Real, permitia progredir salarialmente de três em três anos, no caso dos professores auxiliares até a um quarto escalão. Mas o número de novos doutorados ia crescendo, os quadros mantinham uma estrutura piramidal e a partir de certa altura os auto-denominados “velhinhos” começaram a falar de “bloqueios administrativos à progressão da carreira” e a defender que as mudanças de categoria fossem na prática desbloqueadas em função da antiguidade.

As propostas que vieram a ser assinadas por dirigentes da FENPROF, do SNESup e do SINDEP em 1999 e enviadas ao Ministério da Educação em 1999 – criação extraordinária de um número de lugares de professor catedrático equivalente ao número de professores associados com dez anos na categoria, e identicamente de um número de lugares de professor associado equivalente ao número de professores auxiliares com dez anos na categoria, com um único concurso após o qual se extinguiriam os lugares não preenchidos – relevavam de um sindicalismo self service, que apenas beneficiava os proponentes(iii). Diferentemente e atendendo à imagem de rigor que a profissão deveria manter, o Conselho Nacional do SNESup aprovou em Março de 2000 uma proposta de criação de quadros de dotação global para o conjunto das categorias, obrigando contudo à existência de quotas externas, ou seja à colocação a concurso externo de alguns lugares. Luís Moniz Pereira, delegado sindical da FCT da UNL começou a propor um sistema de mérito que poderia conduzir a uma pirâmide invertida.

 

Revolução e contra-revolução nas carreiras

Sabíamos no SNESup(iv) que Mariano Gago, que aceitara reunir connosco apesar de ser então Ministro da Ciência e Tecnologia, não estava sintonizado com os seus colegas da Educação quanto à revisão do ECDU mas também não aceitava a nossa proposta de quadros de dotação global com quotas externas. Em todo o caso preparámo-nos com três Assembleias Gerais – 2001, 2003, 2007 – para sucessivas negociações com sucessivos Ministros.

A proposta de Mariano Gago para as carreiras acabou francamente por surpreender, na medida em que reduzindo por um lado os graus de liberdade do ECDU aprovado 30 anos antes e criando oficialmente uma carreira com três categorias – catedrático, associado e auxiliar – suprimiu de facto a carreira:

  • por um lado, o acesso às várias categorias não dependeria de qualquer posição ou tempo de serviço em outra categoria mas apenas da detenção ou não de uma qualificação académica – doutoramento ou agregação – e do tempo decorrido desde a sua obtenção;
  • por outro a conversão de uma carreira claramente assente em vínculos de direito público numa carreira assente em contratos de trabalho “em funções públicas” dificulta a mobilidade entre instituições através de mecanismos clássicos como a transferência, que foi até suprimida, e criou problemas quanto a portabilidade de tempo de período experimental, que nos foi recusada nas negociações de 2009.

Não é público quantos professores ou investigadores nacionais ou estrangeiros mudaram, nos anos pós Mariano Gago, de categoria ou de instituição através de concursos internacionais, concursos que, pelo menos numa primeira fase, tiveram a virtude de iludir a proibição de realizar “promoções” de Passos Coelho. O parqueamento na categoria de “ingresso” (agora a de professor auxiliar) afecta ainda muitos. Tenho seguido situações de professores com currículos interessantes nas suas áreas que, apenas ascenderam a professores associados ou nem sequer ascenderam. E há professores auxiliares jubilados nesta dita categoria de ingresso.

Em todo o caso se percebo a limitação, que nunca deverá ser total e permanente, do acesso aos concursos por parte de candidatos não vinculados à instituição não me parece aceitável que o acesso a categorias superiores dependa de uma antiguidade de dez anos na categoria como foi definido por Manuel Heitor e João Leão a partir do Decreto-Lei de Execução Orçamental de 2019, numa medida cuja não-negociação com os sindicatos implica a sua ilegalidade e inconstitucionalidade formal, que nenhum dos ditos, significativamente, quis suscitar.

A aplicação de um diploma sobre abertura de concursos que contraria directamente o ECDU, estará a conduzir a uma nova revisão deste no sentido de que o professor faça toda a sua carreira na mesma instituição, anunciando o MCTES que haverá concursos competitivos para professor auxiliar(v). E acena-se com a utilização da avaliação de desempenho para as mudanças de categoria, o que merece alguma reflexão.

 

Avaliação de desempenho

A possível realização de mudanças de categoria sem concurso com base na avaliação de desempenho periódica é reveladora das dificuldades que os nossos “reformadores” têm tido em lidar com carreiras verticais (pluri-categoriais).

Pode parecer racional que uma vez que a avaliação de desempenho se baseia cada vez mais numa análise curricular tal como os próprios concursos documentais para as categorias de professor associado e de professor catedrático, se faça a economia da publicação de editais e das nomeações de júris e da “confusão” com dezenas de candidatos.

No entanto, a realização de concursos com maioria de membros do júri exteriores à instituição pode ser uma forma de impor alguma aproximação de padrões de desempenho e de valorizar o que na avaliação de desempenho corrente foi pouco valorizado, inclusive porque o seu impacto se foi ampliando com o decorrer do tempo, ultrapassando o horizonte temporal dessa avaliação(vi), ou porque as avaliações de um certo período foram corrigidas para não ultrapassarem certas proporções, o que ficou por exemplo previsto no regulamento da UNL e foi efectivamente aplicado.

E um concurso com júri maioritariamente externo, poderá alertar a instituição que abre o concurso para a necessidade de que o candidato ou candidatos terem efectivamente determinadas competências. Não basta dizer que catedrático é uma categoria de topo, auxiliar uma categoria de base e associado uma categoria intermédia…

Mas cabe perguntar se a incorporação da avaliação de desempenho nos processos de mudança de categoria pode ser feita com esta avaliação de desempenho.

 Mariano Gago, na sua revisão do ECDU (bem como, em relação aos institutos politécnicos, na do ECPDESP), que remeteu quase tudo para regulamentos das instituições, teve o cuidado de fixar na lei um conjunto de princípios em relação à realização da avaliação de desempenho, que foram objecto de apenas algumas alterações pontuais na apreciação parlamentar subsequente.

No entanto os dirigentes máximos das instituições passaram em geral por cima destes princípios:

  • desde logo sobre a obrigação de a avaliação ser feita por órgãos científicos, prevendo-se em lugar disso a criação de estruturas nomeadas pelos dirigentes máximos (no IST mais simplesmente, a avaliação foi entregue aos catedráticos), conseguindo o SNESup quando muito, invocando a lei , fazer incluir no circuito uma ratificação pelos órgãos científicos;
  • depois, assegurando a atribuição automática de pontuação em relação aos professores que exerciam funções dirigentes, o que foi quase regra nos politécnicos mas também, dissimuladamente, foi adoptado nos regulamentos de algumas universidades, garantindo prioridade nas progressões salariais;

Escrevi em 2015, seis anos depois da aprovação da revisão do ECDU (e do ECPDESP) um extenso conjunto de apontamentos sobre estas situações, que deixaram de ser desafiadas: A avaliação de desempenho docente no ensino superior público (apontamentos)

Termino evocando alguns dos primeiros caso de desvio aos princípios consignados por Mariano Gago na revisão do ECDU (e do ECPDESP), que ilustra as dificuldades de articular a lógica de uma carreira vertical com a avaliação de desempenho de cada período.

Mandaram os Estatutos de Carreira valorizar autonomamente a obtenção, num dado período, de graus e títulos académicos.

A Universidade de Coimbra iniciou a negociação colectiva do seu primeiro Regulamento de Avaliação de Desempenho com uma simpática deslocação de um seu Vice-Reitor à sede do SNESup, que foi posteriormente retribuída. Chamou-nos a atenção a circunstância de, contrariamente ao que dispunha o ECDU, a obtenção da Agregação não estar valorizada. Responderam-nos que como os trabalhos arrolados para requerer as provas já entravam noutros itens de avaliação, haveria apenas que numa categoria residual de “outros”, considerar a lição de síntese.

Em sentido oposto, algumas instituições politécnicas optaram por considerar em todos os ciclos avaliativos os graus académicos detidos pelo avaliado como se de uma ponderação curricular se tratasse.

Os órgãos de governo e de gestão controlam já as remunerações. Se passarem a controlar as mudanças de categoria – da base ao topo – através da avaliação de desempenho ou de concursos restritos “à casa”, garantirão a reprodução das próprias estruturas de poder. Tanto pior para a liberdade académica.

Manter algum grau de abertura ao exterior poderá contribuir para um arejamento.

 

Notas

(i) O actual Secretário de Estado Sobrinho Teixeira foi durante muito tempo Presidente de um instituto Politécnico.

(ii) Depois da publicação de um primeiro esboço no governo anterior.

(iii) Como já referi no artigo anterior os mesmos dirigentes vieram a fechar em 2001 um acordo de revisão do ECDU Augusto Santos Silva e José Reis no sentido de limitar o acesso aos concursos a professor associado aos professores auxiliares com 9 anos de serviço .

(iv) Direcção eleita em 2001. Na reunião referida estivemos Teresa Sousa de Almeida, Presidente do Conselho Nacional, Luís Belchior, Presidente da Direcção e eu próprio.

(v) Circulam já pela Internet editais para concursos de professor auxiliar publicados no Diário da República que manifestamente são concursos com fotografia, pelo que as intenções do MCTES..

(vi) Tive ocasião de criticar esta limitação de algumas das métricas adoptadas nos muitos regulamentos de avaliação de desempenho publicados nos primeiros anos

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