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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Os eclipses que nos descobrem

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

DO AVESSO

Ignoramos facilmente o nosso património, a menos que seja a casinha que conseguimos à beira mar com o crédito jovem bonificado de há uns anos e que impediu depois os nossos filhos de comprarem casa onde iriam começar a vida.

Ignoramos facilmente o nosso património, a menos que seja a casinha que conseguimos à beira mar com o crédito jovem bonificado de há uns anos (sim, do tempo do Cavaquismo que derramava jipes para os citadinos e albergues aos veraneantes, mas nada de barcos às pescas, tratores e sistemas de rega à agricultura, condições às indústrias e às empresas, enfim que não acertou uma) – e que impediu depois os nossos filhos de comprarem casa onde iriam começar a vida. Ou então damos atenção ao carrito que lavamos com desvelo mas que já está sujo de apodrecer e no fim das últimas prestações – só porque somos culturalmente povos do ter e do haver, não do criar ou do saber.

Tudo isto, em tom quase amargo, para dizer que um dos principais patrimónios da Humanidade é o seu céu. Não o céu religioso onde povos em várias épocas entranharam e desentranharam deuses estranhos, a solo ou em politeísmos imaginativos, pelo menos até Copérnico, Galileu e sobretudo as lentes de aumentar e a aviação da I Guerra Mundial virem mostrar o que os mais cultos suspeitavam: lá em cima nem sempre está alguém que gosta de nós e de lá vem tanto vazio e morte como dos homens cá em baixo.

Saber que Trump e o outro gordo, também de cabelo mal cortado, da Coreia do Norte podem destruir o planeta ou fazer-lhe feridas irreversíveis, começa por colidir com tudo aquilo em que acredito e só acaba no movimento dócil com que mexo o pescoço e contemplo as noites deste verão. Fique já dito que, em garoto, pedia que me oferecessem (e mais tarde comprava com as moedas que juntava) livros de astronomia que procurava entender, como se aos olhos me fosse necessária a fonte luminosa dos astros, mesmo sabendo que alguns brilhavam para lá da sua morte inevitável.

Eclipse: fenómeno que gerou no passado mitos

Vem isto também a propósito de podermos ver por estes dias um eclipse, fenómeno que gerou no passado mitos, medos e rituais interessantes, que virá demonstrar, para quem duvide, a nossa pequenez perante a imensidão de que fazemos parte (aparentemente sem grande utilidade).

A atmosfera permite-nos contemplar as estrelas, os planetas, os cometas, os satélites mais ou menos artificiais – e dessa observação tem surtido grande progresso. É um exercício de inteligência, esse a que se dedicavam os nossos antepassados e que os ajudou, por exemplo, a andarem de terra em terra, sem se perderem – mesmo quando iam pelo mar de tantos mistérios e perigos. Os árabes orientavam-se pelas estrelas quando as suas caravanas atravessavam os desertos. Desde as primeiras navegações no Mediterrâneo que se tinha a estrela Polar como referência. No oceano Índico, os árabes usavam o kamal para medir a altura das estrelas e os chineses as “tábuas de levar estrelas”. As estrelas com o prefixo al não deixam muitas dúvidas quanto à sua origem árabe, Algol ou Alkaid, por exemplo.

Os navegadores portugueses foram pioneiros na verdadeira navegação astronómica, usando os astros de modo científico, num método que ainda hoje usamos (com a natural evolução dos instrumentos e métodos de cálculo).

Como as aparições de Fátima

Olhamos para o céu e vamos aprendendo os nomes dos seus habitantes. Por exemplo, As Três Marias, asterismo celeste que forma a cintura do caçador Órion. Gosto de Órion que inundou o imaginário de histórias, basta ler A Fada Oriana de Sophia de Mello Breyner Andresen. A mesma constelação até batizou Ourém, Município onde, numa das suas freguesias, um garotinhos afirmaram ter visto o Sol dançar e outras coisas, faz agora cem anos. Aliás, foi em Agosto que nasceu a lenda de terem esses garotinhos sido presos em Ourém, quando na realidade parece que o administrador do concelho os reteve em sua casa, menos para os interrogar ou reter e muito mais para evitar, pelo menos abrandar, o reboliço que tinham criado com as suas declarações – e que preconizavam para 13 de agosto que acontecesse mais um episódio sobrenatural na Cova da Iria ou área próxima.

Ao lado das Três Marias é fácil reconhecer o brilho avermelhado de Betelgeuse, uma das maiores estrelas na nossa galáxia. Do lado oposto estará Rigel. Uma linha através das Três Marias o leva a estrela Aldebaran, em Touro, e de lá parta para as Plêiades (também conhecidas como Sete Irmãs). Sírius, a estrela mais brilhante de todo o céu, também está à nossa espera.

Constelações usadas em navegação

As constelações são essencialmente figuras da mitologia – uma exceção, e não pequena, para as constelações do hemisfério sul que só a partir do séc. XVI começaram a ser catalogadas. Muitas estão relacionadas com a sua constelação, como Deneb (que significa cauda e identifica essa parte da constelação do Cisne). Arcturo significa “o caçador à espera da ursa”. Da imensidão de estrelas apenas algumas dezenas são usadas em navegação, quer pela sua posição no céu, quer pela sua grandeza. Por exemplo, a estrela Polar, pelo facto de se localizar muito próximo do Polo Norte e simplificar o cálculo da latitude. Outra estrela, como a Kochab, foi usada com o nocturlábio – instrumento de medida histórico usado na navegação marítima para calcular a hora através do movimento das estrelas como relógio noturno. Também a estrela Mintaka da constelação de Orionte tem interesse pois está sobre o Equador Celeste.

Com um planisfério celeste e uns binóculos – sim, não é preciso um grande telescópio – podemos conhecer mais do mundo onde habitamos.  Ou então enfiar a cabeça na areia e esperar que o fim eclipse não descubra a luz e revele quem somos.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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