Antecipando a apresentação oficial do Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030, a imprensa nacional já começou a divulgar uma versão preliminar do trabalho que António Costa Silva tem para apresentar ao governo, continuamos a apreciar o conteúdo e os objectivos do documento com que se pretende ancorar a economia nacional para conseguir a sua recuperação na próxima década.
Depois de observarmos as cinco primeiras das dez áreas que o autor distinguiu, passaremos à sexta área, onde aborda o problema da reconversão industrial com uma aposta nos recursos endógenos, na reciclagem e na necessidade de uma estratégia de substituição de importações em equipamentos e bens essenciais face à extrema dependência (do país e da UE) do abastecimento externo e dá grande ênfase às questões da descarbonização da economia e da transição energética, importante pela redução do custo das empresas com a energia (onde defende uma aposta na produção de energia a partir de fontes renováveis, com destaque para a energia solar, geradora de emprego, nas fases de montagem, instalação e manutenção, e o hidrogénio) e que deve ser acompanhada pelo fim das políticas de isenções fiscais de que tem beneficiado o sector dos combustíveis fósseis.
No capítulo da coesão territorial, lança a ideia de dinamizar o interior (o que designa como “hinterland”) numa estreita ligação ibérica e com o lançamento de projectos-âncora em regiões como Bragança, Castelo Branco e Évora, nas que apresentam recursos termais, como Chaves, Vidago, Curia, Pedras Salgadas, Luso, Manteigas, Monchique e São Pedro do Sul, ou nas que oferecem condições especiais de valorização ambiental, como o Vale do Côa, a Madeira e os Açores.
Lançando também um olhar sobre as áreas urbanas – para as quais propõe uma expansão das zonas verdes, uma reabilitação dos edifícios orientada para a sua eficiência energética e a promoção do retorno dos seus habitantes e do comércio de proximidade – e a mobilidade – mediante o incentivo da mobilidade eléctrica (com veículos eléctricos ou a hidrogénio) – reforça a ideia da descarbonização da actividade humana.
Por último, no capítulo da Cultura, Serviços, Turismo e Comércio uma nota para a criação de um fundo público para a criatividade digital, a ideia do trabalho em rede (Rede Nacional de Cineteatros e Cineclubes, Rede Nacional de Arte Contemporânea e Rede de Residências Artísticas) e o especial cuidado na sugestão de programas de apoio directo às PME de comércio a retalho que privilegiem a oferta de produtos nacionais e que promovam a reparação de equipamentos, combatendo a lógica consumista da obsolescência programada e promovendo o aumento da sua vida útil.
Apresentadas, de forma simples e muito reduzida, as dez áreas que Costa Silva elegeu como preferenciais para o seu Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030 importa agora conhecer como é abordada a fundamental questão do seu financiamento.
Fazendo jus ao diagnóstico onde prevê que a economia possa cair 12% neste ano, sugere no imediato uma medida de apoio à tesouraria das empresas, mediante a extensão do período de dedução dos prejuízos gerados aos últimos exercícios financeiros; olhando um horizonte menos imediato e partindo da evidência que as empresas portuguesas estão muito descapitalizadas, preconiza a necessidade de criar condições para o reforço dos seus capitais próprios, através da criação de um fundo que, agregando capitais públicos e privados, privilegie o financiamento a empresas com potencial exportador, a par com a criação de um banco de fomento – orientado para o apoio aos investimentos verdes (conforme o Pacto Ecológico Europeu e os compromissos ambientais nacionais) e para as empresas com maior capacidade de dinamizar a economia e não numa lógica de assumir as operações de risco rejeitadas pelo sistema financeiro convencional – e um programa de apoio à reestruturação de empresas que ajude a recuperação e a realocação de capital em empresas mais produtivas, incluindo a reafectação de meios de produção e trabalhadores, sem esquecer os incentivos a fusões e aquisições para criar massa crítica na economia.
Resta talvez referir que o trabalho de António Costa e Silva vai além da abordagem das áreas de desenvolvimento económico anteriormente enunciadas e das formas de financiar o seu desenvolvimento, pois deixa logo no seu início uma perspectiva geoestratégica que vai além de meros considerandos sobre a crise que pretende ajudar a ultrapassar. Assim, a par com as grandes orientações no sentido da transição energética e da electrificação ou da fileira oceânica, deixa-nos ainda a ideia do ressurgimento do Oceano Atlântico como grande plataforma energética e comercial e da necessidade do reforço nacional como potência de média dimensão, ligando a diplomacia (o exercício do chamado “soft power”) e as missões de solidariedade internacional que as Forças Armadas Portuguesas têm vindo a realizar com o lançamento de projectos de cooperação com os países do Norte de África (combate à ameaça climática e à escassez de água) e com as nações do Atlântico Sul no sentido da defesa das rotas internacionais de comércio.
Louvando a iniciativa de abordar a questão da recuperação económica sustentado numa perspectiva que vai muito além de visões redutoras e de curto prazo, explanados os pontos mais relevantes (que espero que ajudem a entender minimamente as propostas que constam do Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030) e lembrando que qualquer trabalho desta natureza pode (e deve) ser sempre objecto de análise crítica, deixo duas observações:
- A primeira, de estranheza, quando defendendo a necessidade de um modelo de agricultura sustentável não faz qualquer referência ao problema do olival intensivo ou das monoculturas de eucalipto e pinheiro-bravo (tantas vezes responsabilizadas pelo elevado número de fogos anuais) ou face à ausência de referência às potencialidades agrícolas da região da Lezíria do Tejo, nomeadamente pela crescente importância que vem tendo no plano exportador e porque é uma região que beneficia de condições edafoclimáticas de excelência;
- A segunda, por apesar de apontar a ideia de alguma diversidade nas fontes de financiamento (fundos europeus, capitais públicos e privados) perpetuar o conceito de sujeição ao sistema financeiro. Até quando retoma a proposta de criação de um banco de fomento (ideia que remonta aos famigerados tempos da troika) parece fazê-lo num claro branqueamento das responsabilidades do sector financeiro (nacional e estrangeiro) na lastimável situação a que têm conduzido as principais economias.
No plano europeu, surgiu uma proposta da Comissão Europeia para a criação de um Fundo de Recuperação Europeu no valor de 750 mil milhões de euros, sem grande explicação ou justificação para o valor sugerido, cuja proposta inicial acaba de ser profundamente alterada pelo Conselho Europeu (órgão que agrega os chefes de governo dos 27 estados-membro) e a sua distribuição entre 500 mil milhões de subsídios e 250 mil milhões de financiamento ficará apenas como recordação, pois as negociações finais transformaram-na numa distribuição 390/360 mil milhões, transferíveis respectivamente a fundo e a título de empréstimo, o que significa na prática uma distribuição quase a 50/50 e o consequente agravamento do custo final do programa, facto que até a presidente do BCE já veio a público reconhecer. Do ponto de vista nacional estava inicialmente prevista uma distribuição a título de subvenção de 15,5 mil milhões e acabámos por ver atribuídos 15,266 mil milhões (mais de 98% do valor previsto) e mantivemos os 10,8 mil milhões em empréstimos, a que se juntarão mais 29,8 mil milhões de euros do Quadro Financeiro Plurianual (QFP) que distribui verbas para a coesão, a agricultura e outros programas como o novo Fundo de Transição Justa ou as pescas. Este resultado, que pode ser considerado positivo do ponto de vista da necessidade deve ser ponderado (e muito) com as devidas cautelas, seja porque se tratam de fundos de aplicação plurianual, seja porque só a quebra no PIB estimada para este ano deve ultrapassar os 20 mil milhões de euros, seja pelo que bem conhecemos da actuação errática dos poderes de Bruxelas e da facilidade com que aos primeiros escolhos se mudará o que hoje parece ser uma opção muito solidária.
Assim, e mais cedo que tarde, aos primeiros sinais de dificuldades (e associando o estado em que parecem estar as maiores economias mundiais ao enorme potencial de desastre que o sistema financeiro continua a alimentar) os grandes apólogos do neoliberalismo reemergirão para incensar a “mão invisível” e fustigar os despesismos públicos.
Mais prosaicamente, e para concluir, o verdadeiro e grande problema que se antevê neste Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030, ou noutro, é a proverbial dificuldade nacional em operacionalizar até as melhores ideias.
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