O funcionamento do Governo e da Administração Pública portuguesa continua a mostrar-se errático em termos de pandemia, como, em termos mais recentes mostra a peça publicada em 3 de Julho de 2021 em o Público “Forças Armadas vacinaram 6000 trabalhadores de explorações agrícolas em Odemira” de que passo a extrair:
Entre o dia 25 de Junho e o dia de sexta-feira, 2 de Julho, uma equipa composta por uma médica e dez enfermeiros dos três ramos das Forças Armadas, participaram na vacinação contra a covid-19, de cerca de 6000 trabalhadores que executam tarefas agrícolas nas explorações (quintas) do concelho de Odemira.
…
Os militares colaboraram com a Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano, e intervieram no centro de vacinação de São Teotónio, na preparação, administração e registo das vacinas, bem como apoio na zona de recobro, pós vacinação.
Esta acção resultou de um pedido da Autoridade. Nacional de Emergência e Protecção Civil ao Estado-Maior-General das Forças Armadas
Pode ser que este exemplo ilustre as virtualidades do funcionamento em rede, mas, se repararmos bem, Odemira foi falada durante muitas semanas antes que, sabe-se-lá após quantas interacções, e aparentemente sem intervenção do Governo, se chegasse a esta actuação.
Em rigor, temos neste momento duas estruturas de coordenação em sede de intervenção espacial:
- as comissões de coordenação e desenvolvimento regional que após um moroso e algo pantanoso diálogo intra – bloco central, passaram a ser geridas por um presidente eleito por representantes dos municípios mantendo sempre um vice-presidente nomeado pelo Governo;
- os cinco secretários de estado do actual governo que no contexto pandémico que houve que gerir a partir de 2020 foram designados, na lei orgânica do governo e em acumulação de funções para gerir, em cada região, a coordenação dos serviços dependentes dos vários ministérios, e a “negociação” com os municípios.

António Costa que transitara em 2007 de Ministro da Administração Interna, onde contribuirá para a reestruturação ao menos no plano legislativo o sistema de protecção civil, para presidente da Câmara Municipal de Lisboa, pronunciou-se enquanto comentador(i) contra a reforma de Passos Coelho e Miguel Macedo que em 2011 procedeu à supressão dos governos civis, explicando que estes eram os únicos serviços externos de que o MAI dispunha.
Retomei por estes dias a leitura de Do Reino à Administração Interna – História de um Ministério (136-2012) , coordenado por Pedro Tavares de Almeida e Paulo Silveira e Sousa(ii) e reunindo contributos de vários autores que abordam múltiplos ângulos e inevitavelmente por vezes se sobrepõem.
Em particular, prendem-se com a questão dos governos civis os textos “Tutelar, negociar e dirigir: O Estado liberal, os governos civis e os poderes locais (1834-1926)”, de Paulo Silveira e Sousa, A coordenação territorial. Do estado autoritário à democracia. Governos civis, municípios e freguesias (1926-2011)”, de Rita Abrantes de Carvalho e Paulo Silveira e Sousa” A gestão da legitimidade: A administração eleitoral (1920-2011), de Jorge Miguéis, Paulo Silveira e Sousa e Pedro Tavares de Almeida. A previsão da existência de governos civis data de 1835, e, sem querer perder de vista as nuances que os autores foram cuidadosamente introduzindo, em todas as fases – vários períodos da constitucionalismo monárquico, I República, Estado Novo, os governos civis têm para além de funções administrativas cujo âmbito e poderes vão variando, funções políticas e eleitorais que visam influenciar as populações, designadamente na preparação e decorrer de actos eleitorais, quer estes formalmente sejam competitivos (o que não impede que na monarquia cada Governo saísse vencedor nas eleições que organizava) ou não (no caso do Estado Novo, mas mesmo aí a participação eleitoral dependia do estado de espírito e satisfação das populações, que também eram mobilizadas para manifestações “espontâneas”.
Como os autores vão explicando, mesmo no Estado Novo em que os presidentes de câmara são por força do Código Administrativo de 1936-1940 por um lado magistrados administrativos / representantes do Governo como os governadores civis, por outro executores das deliberações das vereações, era necessário que a transmissão de indicações funcionasse nos dois sentidos e que existisse entre o governador civil e os seus interlocutores uma negociação / contratualização permanente. O livro organizado por Pedro Tavares de Almeida e Paulo Silveira e Sousa refere a experiência em Vila Real do secretário de Salazar, tenente Assis Gonçalves, e perturbações em Aveiro subsequentes a uma mudança de governador civil. Já tive entretanto ocasião de fazer aqui referência a uma publicação de José Horácio de Moura, governador civil de Coimbra de 1960 a 1970 sobre o primeiro ano do seu mandato.
A história dos governos civis, quando vier a ser feita, pode ser significativa em cada um dos casos concretos mas também poderá ser útil uma visão de conjunto, por exemplo se foram mantendo as mesmas sedes (e qual foi a afectação que estas tiveram após a extinção, em 2011). E será que os seus arquivos foram preservados e já estão disponíveis para consulta?.
Mesmo assumindo que certo tipo de condicionamentos vieram a desaparecer com a democracia e com uma legislação eleitoral democrática, e que o peso dos governadores civis foi(iii) desaparecendo à medida que muitas das suas competências regulamentares começassem a passar para as câmaras municipais não seria despiciendo estudar de que forma até à sua extinção, os governadores civis da democracia continuaram a dar informações aos Governos que os tinham nomeado sobre o ambiente político dos seus distritos e sobre os eventos, mais significativos, que critérios seguiram na atribuição de subsídios por verbas dos seus cofres privativos, etc.

Confesso que estou especialmente motivado para levantar esta questão depois de ter lido em numerosos textos publicados a propósito da interacção da Câmara Municipal de Lisboa com as embaixadas que de 1974 a 2011 as intenções de realização de manifestações eram entregues nos governos civis e a partir de 2011, com a sua extinção, passaram a ser entregues nas câmaras municipais.
Quando se começou a dizer que a lei era de 1974 – mais precisamente é o Decreto-Lei nº 406/74, de 28 de Agosto (Garante e regulamenta o direito de reunião) – começou a ser insinuado que o reenvio aos alvos políticos das manifestações era culpa de disposições obsoletas que deveriam ser alteradas – José Luís Carneiro – ou que deveriam ser feitas novas leis que substituíssem as do direito de reunião (e manifestação) e a da requisição civil – Jorge Lacão. Não vou discutir com Lacões e com Câncios as leis que têm a assinatura de Vasco Gonçalves … e de Salgado Zenha, já o fiz em artigo anterior no Jornal Tornado(iv).
É evidente para quem tenha estado atento que algumas disposições têm sido interpretadas de forma, digamos, mais benigna, à luz da Constituição e do convívio democrático entretanto consolidado, como a que estabelece interdições:
Sem prejuízo do direito à crítica, serão interditas as reuniões que pelo seu objecto ofendam a honra e a consideração devidas aos órgãos de soberania e às Forças Armadas.
Ou a que impõe que em dias de semana as manifestações só se possam realizar a partir de certas horas.
Convém ter presente que na técnica seguida pela lei de 1974 há toda uma série, de objectivos e formas de manifestação que não são lícitos e que, embora não se consagre necessidade de prévia autorização da manifestação há a possibilidade de a autoridade impor a alteração de trajectos a cortejos, desfiles e manifestações ou de determinar a interrupção da sua realização. E os promotores certamente poderão ser responsabilizados a posteriori, mediante participação ao Ministério Público.
E será que no período inicial de vigência desta lei, em que por vezes se realizaram manifestações com grande impacto, os governos civis não se corresponderam com a hierarquia política, antes e depois? E que depois de estruturados oficialmente serviços de informações, estes não foram recebendo informações sobre os promotores? Em que condições ficou arquivada a documentação correspondente?.
Quais eram exactamente essas autoridades a quem se devia comunicar a intenção de realizar a manifestação:
As pessoas ou entidades que pretendam realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos ou abertos ao público deverão avisar por escrito e com a antecedência mínima de dois dias úteis o governador civil do distrito ou o presidente da câmara municipal, conforme o local da aglomeração se situe ou não na capital do distrito.
Mas quer isto dizer então que os avisos da realização de manifestações eram já por lei, na maioria dos concelhos do país, objecto de comunicação aos presidentes de câmara ? Não foi divulgada informação sobre a forma como esta previsão foi executada, de qualquer forma ela surge ainda na vigência do Código Administrativo de 1936-40, em que o presidente de uma câmara é ainda um magistrado administrativo nomeado pelo Governo, quadro que se alterou com a publicação da CRP de 1976, a realização das primeiras eleições locais e a aprovação em 1977 da legislação de atribuições e competências das autarquias locais de 1977.
Neste contexto, a transferência para os presidentes de câmara em 2013 de toda uma série de competências dos governadores civis é questionável. Já se vinha em rigor verificando a transferência de competências sobre licenciamento / fiscalização de actividades mas desta vez as competências nem sequer acompanham, a não ser implicitamente, uma transferência de atribuições para os municípios. Do mesmo modo, substituiu-se o governador civil pelo presidente de câmara numa série de aspectos da legislação eleitoral, mas aí a legislação já previa a colaboração de vários níveis da administração. No caso que vimos tratando do direito de reunião (e manifestação) mudou-se na lei de 1974 a redacção de um simples número e confiou-se ao presidente de câmara a responsabilidade pelo exercício de uma competência do Estado – garantir o direito de reunião e manifestação, para não falar do possível impacto, no caso do município de Lisboa, em termos de relações internacionais.
Ora se o presidente da câmara passou a ser para este efeito “a autoridade” cabe-lhe, em meu entender, a responsabilidade de, com a recepção do aviso de intenção de realizar uma manifestação, a responsabilidade de gerir o processo e de mandar fazer as comunicações aos promotores a que houver lugar, com envolvimento dos meios policiais que se justificar, mas sempre através do seu gabinete. Como também de garantir a realização de manifestações contra tentativas e contra manifestação. Com responsabilidade política e sentido de proporcionalidade. Há responsabilidades que se não delegam.

Já se percebeu que António Costa, presidente da câmara de Lisboa, não tinha este entendimento e mandou dar conhecimento ao MAI e à PSP daquilo que chegasse à câmara em matéria de manifestações. Mas no ano seguinte, com a contestação ao programa da troika as manifestações mesmo e talvez sobretudo uma vertente informal, multiplicaram-se e ganharam dimensão. Depois do encerramento formal da manifestação subsequente à greve geral de 14 de Novembro de 2012 registaram-se graves incidentes com a polícia envolvendo os muitos manifestantes que não desmobilizaram. Escrevi na altura sobre isso(v). Outros desenvolvimentos se preparavam a propósito de uma alegada intenção de corte da Ponte 25 de Abril por manifestantes mas a partir de mudança de titularidade da PGR o balão foi esvaziado.

À tragédia parece ter sucedido a farsa. A acreditar no extasiado Fernando Medina, que parece ter sido confrontado pela primeira vez com a problemática da realização de manifestações, o problema será o automatismo que a circulação dos avisos enviados pelos promotores foi adquirindo. Espero que na próxima tentativa de presidir à autarquia perceba finalmente como é que tudo isto funciona.
Notas
(i) Num debate da então, salvo erro, “Quadratura do círculo”
(ii) Edição de 2015 publicada pela Imprensa Nacional Casa da Moeda
(iii) Ver artigo em Jornal Tornado “O Partido do Centro” e referência à edição do Governo Civil de Coimbra “Um ano de trabalho em comum pelo bem comum”, Coimbra, 1961
(iv) Ver “Costa e a sua Greve”, Jornal Tornado, de 28-8-2019
(v) Ver no meu blog pessoal o Post “O caso Paula Montez e as secretas desconhecidas”