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Quarta-feira, Março 27, 2024

Reflexões sobre José Carlos Ruy, meu pai

Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Pesquisadora, coordenadora do Centro de Memória Sindical e jornalista do site Radio Peão Brasil. Escreveu o livro "O mundo do trabalho no cinema", editou o livro de fotos "Arte de Rua" e, em 2017, a revista sobre os 100 anos da Greve Geral de 1917

Ter sido educada por ele, exposta a este ambiente intelectual e ao mesmo tempo, à realidade de uma família operária e trabalhadora, foi um grande privilégio para mim e para minhas irmãs Luciana e Mariana. Isso nos deu uma formação política e cultural desde sempre. Plantou em nossa consciência uma visão crítica da sociedade e a paixão pela arte, pelas ciências e pela história.

Para expressar um pouco da história do meu pai, da minha perspectiva como filha, devo dizer, em primeiro lugar, que em toda sua vida, a busca intelectual reinou sobre todas as coisas. Isso não é um demérito da nossa relação, pelo contrário. Nem uma forma de frieza afetiva. Como filho de uma família operária, uma família pobre e grande, cujos membros sempre foram orientados pela necessidade do trabalho, ele encontrou na atividade intelectual uma forma de viver e se expressar.

O seu pai, meu avô Orlando, era operário têxtil, e depois que se aposentou foi ser corretor de imóveis, e minha vó, Dona Pétria era costureira, costurava para fábricas, mas era autônoma, e depois trabalhou como merendeira em uma escola. Ou seja, sempre trabalharam até o fim da vida. E tiveram nove filhos.

Eles moraram na vila operária que pertencia à fábrica onde meu avô trabalhou e na década de 1970 compraram uma casa, em São Bernardo, nos arredores da fábrica da Volkswagen, uma Rua que era entrada daquela Av Maria Servidei, que é onde fica a enorme montadora. Meu pai chegou trabalhar lá, na Volks, embora meus tios tenham feito outras atividades.

Este trabalho intelectual com o qual meu pai teve a oportunidade de ter contato na juventude foi um caminho de engrandecimento para ele. Engrandecimento como pessoa, como caráter e até mesmo profissional e social. Ele pôde compreender a vida operária, que era sua realidade, através de teorias sofisticadas, pelas quais se apaixonou desde a juventude. Pôde dimensionar sua própria condição, entender-se como um operário brasileiro e, a partir disso buscar entender a realidade e a história do país e dos trabalhadores do mundo.

José Carlos Ruy – Clécio Almeida

Claro que ele contou com pessoas que o influenciaram, com mestres neste caminho alternativo que trilhou e que fez dele um intelectual influente. O primeiro e acho que o principal foi o sociólogo Clóvis Moura, com quem meu pai teve uma relação muito profícua e com quem aprendeu muito, principalmente sobre escravidão e racismo, que foi um tema no qual ele se aprofundou ao longo de sua vida.

No prefácio escrito pelo Julio Vellozzo, do livro Biografia da Nação está escrito: “outra força determinante deste livro é Ruy ter escolhido dar lugar decisivo ao escravo em sua interpretação do período anterior à abolição”. Isso mostra como o racismo estava no centro de suas preocupações. E ele, inclusive, deixou um livro pronto sobre racismo, que ele chamou de “Há racismo no Brasil?” e que ainda não foi publicado.

Também cito aqui o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, com quem meu pai trabalhou no jornal Movimento. O trabalho na redação do Movimento com o Raimundo foi para ele uma oportunidade rara de formação na área do jornalismo. Foi a sua escola de jornalismo.

Com isso, não é exagero dizer, que ele, que parou de estudar no segundo colegial, construiu um trabalho e desenvolveu importantes estudos e pesquisas, com o mesmo nível daqueles que passaram pelo mais alto grau da formação acadêmica. E com a vantagem de não estar preso aos padrões engessados das faculdades. Posso afirmar sem medo que ele fazia um trabalho extremamente sofisticado, apurado e que sempre nos levava a pensar além do óbvio.

Ter sido educada por ele, exposta a este ambiente intelectual e ao mesmo tempo, à realidade de uma família operária e trabalhadora, foi um grande privilégio para mim e para minhas irmãs Luciana e Mariana. Isso nos deu uma formação política e cultural desde sempre. Plantou em nossa consciência uma visão crítica da sociedade e a paixão pela arte, pelas ciências e pela história.

Quer dizer, uma vida cultural rica e sofisticada, e uma educação de um bom nível, era o nosso normal, ao mesmo tempo em que era nossa realidade também, principalmente para mim e para Luciana, que somos da mesma geração, ir para São Bernardo de ônibus e metrô nos fins de semana, visitar os avós, tios e primos, passar férias em São Bernardo e brincar nas cegonheiras da Volks, que ficavam estacionadas em frente à casa da minha avó – moro em São Paulo desde criança, no bairro de Pinheiros onde ficava o jornal Movimento.

José Carlos Ruy, durante o lançamento da versão brasileira da revista Jacobin, conquistou a simpatia dos presentes, a grande maioria jovens l Foto: Jacobin Brasil

E não foram apenas nós, suas três filhas, que tivemos o privilégio desta influencia. Muitos de seus irmãos, ele era o mais velho de nove irmãos, seguiram seus passos e foram contagiados pelo amor ao conhecimento. Como o Marcos, a Maria Lucília que também são do PCdoB, a Pétria, o Mario, enfim. Todos se formaram em faculdades. Além dos seus amigos do PCdoB, do Movimento, da Editora Abril, que certamente o valorizavam e reconheciam toda a grandeza da contribuição intelectual que ele deu para a política e para os movimentos sociais.

Nos últimos anos nossa cumplicidade se aprofundou, quando ele voltou a morar em São Paulo. Isso o ainda aproximou tanto de mim, da Luciana e também do João, Juruna, meu companheiro, que também teve a oportunidade de ser um bom amigo do meu pai.

Nós chegamos a assinar um artigo juntos no ano passado, e isso é muito bom, porque esse trabalho de ler, debater e escrever é, enfim, a nossa vida. Até acontecer o que aconteceu, que me deixou muito abalada.

O André Cintra disse que a morte do Ruy causou grande comoção porque pegou todos de surpresa. Acho que foi isso mesmo. E também ela veio em uma sequência muito triste de perdas, o Augusto Buonicore, a Christiane Britto, que era a companheira do meu pai, o Tisiu, e tantos outros. Um processo muito difícil para nós que ficamos. Conversei com o Renato Rabelo por telefone após a morte do meu pai e ele disse que o Ruy era um irmão para ele e que essas perdas serão irreparáveis, que concretamente vai demorar muito para conseguir dar conta dessas perdas, enfim.

Então isso é o que eu quero destacar sobre o legado do meu pai. A grande paixão pelo conhecimento, pelo pensamento, cultura e arte que fez dele o importante intelectual, a grande pessoa que ele foi. Uma paixão contagiante e generosa que mudou para melhor a vida de todos à sua volta.

José Carlos Ruy e a filha Carolina Maria l Foto: Acervo de Carolina Maria Ruy

Texto adaptado da participação na live promovida pela CTB em homenagem à José Carlos Ruy | Texto em português do Brasil


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