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João de Sousa

Sábado, Abril 27, 2024

Revolução Democrática no Irão

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Potencial estratégico global

  1. ‘Pode o regime cair? Sim, pode!

O assassinato, em 16 de setembro, de uma jovem detida pela polícia de costumes iraniana por não ter tapado a cabeça da forma oficialmente exigida, provocou a revolta do povo iraniano, exigindo o fim da ditadura clerical e a instalação da democracia no país.

Os iranianos já desafiaram as forças repressivas antes, mas desta vez estão a fazê-lo de forma maciça, contínua e nacional, apesar das balas, das centenas de vítimas mortais e das dezenas de milhares de detenções, persistindo no seu apelo à mudança de regime para uma forma democrática e republicana de governo.

Os dirigentes do regime clerical reconheceram que os protestos são nacionais e contam com a direção organizada das unidades de resistência do Conselho da Resistência Nacional do Irão (CNRI), ou da sua principal componente, a Organização dos Mujahedin do Povo do Irão (os hipócritas, de acordo com o nome pejorativo que lhe é dado pelo regime). Repetem também a tradicional mantra da conspiração ‘americano-sionista-saudita’, que todavia soa tão oca que mesmo altos responsáveis do regime se distanciam publicamente dela.

As autoridades iranianas têm atacado repetidamente o Curdistão iraquiano visando refugiados curdos iranianos em Erbil e Sulaymaniah e ameaçaram abertamente atingir os iranianos afiliados na Resistência Iraniana refugiados na Albânia, como retorção pela revolta popular no Irão. A repressão tem sido particularmente violenta no Curdistão e no Baluquistão, onde as autoridades cometeram assassínios de civis, indiscriminados e em massa.

Apesar da repressão e das repetidas garantias dos responsáveis de que conseguiram esmagar o descontentamento popular – o último até à data de Khamenei a 22 de novembro –, os iranianos de todo o espectro social e étnico continuam a mostrar a sua vontade de derrubar a ditadura.

O divórcio entre o povo iraniano e o clero opressor é um facto que mesmo aqueles que persistentemente fizeram campanha para apaziguar o clero iraniano estão agora a admitir, e este divórcio é tão acentuado que a pergunta e resposta levantadas por um jornalista português (Santos, 2022) faz todo o sentido: “Irão: pode cair o regime? Sim, pode!’.

A resposta implica um conjunto de possibilidades que aqui passo em revista.

  1. Continuidade

A liderança do regime iraniano de núcleo duro parece confiante de que tudo voltará ao normal após a actual turbulência, como já aconteceu depois de vários outros episódios de contestação.

Na frente externa, é verdade que o regime está extremamente isolado, mas também é verdade que já tinha estado bastante isolado no passado, conseguindo contornar esse isolamento.

No entanto, no que diz respeito à frente interna, há algo de novo na actual situação. Em entrevista a Simay Azadi (canal de televisão da CNRI), Hadi Roshanravan – membro do Comité de Segurança e Contraterrorismo do Conselho Nacional de Resistência do Irão (CNRI) – considerou que todos os instrumentos utilizados até agora pelo regime para responder aos protestos se esgotaram. Enquanto a anterior revolta nacional, em 2019, foi contida após um banho de sangue de manifestantes que causou um número estimado de 1500 vítimas mortais, a actual continua depois de vários massacres ocorridos em várias cidades iranianas.

As declarações e propaganda do líder supremo, disponíveis no seu site, ou nas redes sociais, (apesar de muitas vezes sancionar opiniões não violentas, as principais redes sociais ocidentais não impedem a propaganda do regime iraniano genocida) parecem estar cada vez mais divorciados da realidade, referindo-se a um mundo de fantasia onde a conspiração sionista global procuraria permanentemente encontrar novos truques para fazer descarrilar o apoio do povo iraniano ao regime. No seu mundo imaginário, não há lugar para compromissos, e a única resposta é as forças da repressão esmagarem os protestos como fizeram no passado.

Um número crescente de dirigentes do regime está, no entanto, consciente de que não existe um nível de repressão que consiga calar os iranianos. O líder espiritual envelhecido e os seus colaboradores próximos nos conselhos de topo do regime ocupam as principais alavancas do poder e não parecem oferecer uma perspetiva de poder estável.

Em alternativa, a utilização dos chamados ‘reformistas’ para manter o descontentamento dentro dos limites geríveis pelo regime não parece ser uma opção viável. O apelo da ‘Frente Iraniana da Reforma’ a um “referendo” sobre o regime não parece suscitar apoio. O facto de a figura emblemática desta frente, o ex-Presidente Mohammad Khatami, considerar impossível a mudança de regime, deixou claro o vazio da sua proposta e o seu profundo divórcio com o povo iraniano.

O sintoma mais emblemático da polarização da sociedade iraniana é a recente declaração filmada da sobrinha do Líder Supremo – Farideh Moradkhani – publicada pelo seu irmão, um médico exilado, dissidente político, a viver em França, o Doutor Mahmoud Moradkhani, pouco depois de a sua irmã ter sido detida.

Em 2019, as declarações do Dr. Moradkhani mostraram que, apesar da sua oposição ao regime e do seu princípio de domínio religioso, ainda condenava as sanções ocidentais contra ele. O vídeo da sua irmã aprisionada, que tornou agora público, exige no entanto sanções muito mais radicais do que as usadas até agora, e repete a principal exigência tradicional feita pelo Conselho Nacional de Resistência do Irão:

‘Os iranianos livres e corajosos derrubarão sozinhos este regime opressivo e tirânico. O que é necessário é abster-se de apoiar o regime que, em novembro de 2019, assassinou milhares de iranianos em quatro dias, enquanto o mundo assistia sem intervir. Isto, e catástrofes semelhantes, constituem uma marca de vergonha na testa da humanidade. Chegou a altura de, como acto simbólico , todos os países que defendem a liberdade retirarem os seus representantes do Irão e expulsarem dos seus países todos os representantes e adidos deste regime sedento de sangue. Esta será uma demonstração de solidariedade para com o público iraniano amante da liberdade.’

A comunidade internacional reforçou, de facto, a sua posição crítica em relação ao regime. O Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou uma ‘Missão de Averiguação de Factos para investigar alegadas violações dos direitos humanos no Irão Relacionadas com os protestos que começaram em 16 de setembro de 2022’ por uma maioria invulgar e forte; a Presidente do Parlamento Europeu apelou primeiro à diplomacia europeia para acabar com uma relação normal  com o regime e, depois, anunciou o  suspensão de todos os contactos do Parlamento Europeu com este.

Ainda assim, há um longo caminho a percorrer para que a comunidade internacional inverta a sua política de acomodação da repressão interna e expansão externa iranianas, e muito do que vai acontecer no país depende de uma reviravolta ocidental dessa política.

Muito dependerá também do sucesso russo na sua invasão da Ucrânia. O apoio da Rússia foi crucial para que o Irão retivesse o seu domínio na Síria, e o apoio iraniano também tem sido importante para a actual agressão russa. Se a actual aventura da Rússia falhar, isso terá repercussões significativas no Irão.

O apoio da China ao regime também foi muito importante. No entanto, o envolvimento total chinês não conseguiu impedir a condenação internacional do Irão no Conselho dos Direitos Humanos. Por outro lado, a expansão económica chinesa através da Iniciativa conhecida como ‘Rota da Seda’ perdeu claramente o folgo, enquanto o regime enfrenta, pela primeira vez em décadas, sinais abertos de insatisfação interna com a sua política de pureza sanitária e com o fim da era de prosperidade.

  1. Entre o modelo sírio e a mudança de regime

A carnificina síria é a maior que testemunhámos no presente século. Comparando-a com outras catástrofes humanitárias, em grande parte resultantes do fanatismo islâmico, como as do Afeganistão, do Iraque e da Líbia, a síria é diferente, no sentido de não estar relacionada com os erros de acção, mas sim com a inação ocidental. Tem semelhanças com a devastação da Chechénia pela Rússia de Putin, mas noutra escala e feita em conjunto com a rede internacional de milícias liderada pelos Guardas Revolucionários Islâmicos de Teerão.

De acordo com os dados oficiais do ACNUR, o conflito forçou 13 milhões de pessoas a fugir das suas casas e, de acordo com a ONU, fez mais de 350.000 vítimas. Para além da dimensão da catástrofe humanitária, a devastação da Síria utilizou algumas sofisticadas ferramentas de guerra que já tinham sido usadas pelo Irão no Iraque.

A primeira é a polarização tóxica que testemunhei pessoalmente e denunciei extensivamente. Desde o início da invasão, o Irão conseguiu jogar em ambos os lados do conflito. Pressionou a invasão do Iraque, alimentou a maior parte da campanha de desinformação sobre as ‘armas de destruição maciça’, trabalhou em conjunto com as forças invasoras supostamente para neutralizar a ‘resistência baathista’, ocupando posições-chave sobre o novo aparelho de Estado iraquiano graças ao Ocidente; mas, ao mesmo tempo, criou e animou a Al-Qaeda no Iraque, denunciou o expansionismo e a guerra dos EUA, e promoveu o terrorismo e a agitação contra a presença ocidental.

O Ocidente tem sérias dificuldades em compreender esta táctica de polarização tóxica que permite ao inimigo  jogar simultaneamente em ambos os lados do conflito. Para além disso, o Ocidente permitiu que um extenso aparelho de desinformação iraniano ganhasse acesso ao seu quadro institucional, desfocando ou mesmo falsificando o que se passou no terreno, tornando impossível a compreensão da realidade.

Nada foi mais simbólico do sucesso das tácticas iranianas de polarização tóxica e desinformação do que a aceitação do Ocidente da pressão iraniana para perseguir o principal grupo da oposição – os Mujahedin do Povo do Irão, também conhecido pelas suas iniciais em língua farsi, MEK – bombardeando-o nos seus centros de refúgio no Iraque e colocando o grupo nas suas listas negras.

Esta estratégia também permitiu o controlo iraniano quase total do Iraque, tanto através das milícias como directamente no governo, onde um notório membro dos Guardas Revolucionários Islâmicos, Nouri al-Maliki , ocupou mesmo o cargo de Primeiro-Ministro.

A crise do controlo iraniano do Iraque aconteceu apesar da ação ocidental; quando a massa da população muçulmana xiita – cujo peso na população iraquiana tinha sido argumentado pelo Ocidente como uma razão para dar o controlo do país ao Irão – se rebelou contra a ocupação iraniana.

O regime iraniano está a usar as mesmas tácticas para enfrentar a revolução actual. No dia 25 de outubro, o Califado (ISIS) reivindicou a autoria de um ataque terrorista a um Santuário xiita em Shiraz.  Enquanto o Ocidente, aparentemente, acreditou que as autoridades iranianas foram vítimas, o povo iraniano, no entanto, não acreditou nessa narrativa, e culpou o regime iraniano  pelo que aconteceu.

O Instituto Quincy – atualmente o mais importante lobby oficioso do regime iraniano nos EUA – tentou desesperadamente promover a narrativa das autoridades iranianas, acusando a imprensa de inventar um acontecimento de ‘falsa bandeira’, mas até agora não conseguiu vencer na opinião pública. É claro que este não foi um ataque de ‘falsa bandeira’ do Califado, como tantos outros feitos pelos antecessores do Califado também o não foram; eles saíram antes da cooperação entre os dois inimigos aparentemente inconciliáveis.

O regime também investiu fortemente no Campeonato Mundial de Futebol, com uma forte presença no Catar de membros da Guarda Revolucionária Islâmica, disfarçados de fãs de futebol, incluindo jovens mulheres vestidas de forma ocidental. Até foi inventado um suposto acto de desvinculação da equipa de futebol em relação ao regime, não entoando este o hino do país; quando na realidade não há tradição da equipa desportiva fazê-lo em ocasiões semelhantes.

Embora este acto de desinformação tenha passado sem ser travado na maior parte da imprensa ocidental, o povo iraniano também não o comprou e celebrou maciçamente a eliminação da equipa no Mundial de futebol por ser uma equipa do regime e não do país.

Várias outras campanhas de manipulação estão em construção e prevê-se que sejam potenciadas no futuro, nomeadamente a promoção de conflitos entre diferentes grupos étnicos; campanhas para manchar a imagem da verdadeira oposição por falsos dissidentes e falsos opositores, e o uso de grupos terroristas externos que visam símbolos religiosos ou populares.

Espera-se também que todo o peso das brigadas internacionais dos Guardas revolucionários islâmicos – que incluem cidadãos afegãos e paquistaneses organizados nas brigadas Fatemiyoun, o Hezbollah libanês, o Ansar Alá do Iémen e várias milícias iraquianas e sírias – sejam chamados para o esforço de guerra do regime contra o povo iraniano.

Por conseguinte, o chamado ‘cenário sírio’ não pode ser descontado das possibilidades em presença. O povo iraniano mostrou até aqui um elevado grau de resiliência, baseado na experiência de décadas de manipulação da informação pelo regime. É necessário saber até que ponto o regime poderá contar com o apoio da Rússia e da China.  Muito, no entanto, também dependerá da capacidade ocidental para desarmar as manipulações.

Se o elevado nível de maturidade até agora demonstrado pelo povo iraniano na actual revolução for acompanhado por uma posição responsável e conhecedora dos países ocidentais, existem verdadeiras hipóteses de ver a democracia a ser estabelecida no Irão.

As consequências de um tal desenvolvimento na região e no mundo em geral dificilmente podem ser sobrestimadas.

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