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Sexta-feira, Setembro 13, 2024

Será a Eutanásia um acto de amor?

José Carlos S. de Almeida
José Carlos S. de Almeida
Professor de Filosofia do ensino secundário. Licenciado em Filosofia e em Direito.

O sofrimento é a expressão de uma determinada situação que pode ser caracterizada pela existência de dores, nomeadamente crónicas, mas que não se esgota na existência de dores.Neste sentido, o sofrimento é mais amplo que a dor e pode até haver sofrimento sem dor, do mesmo modo que podem haver dores que não causam sofrimento, mas, por exemplo, prazer.

Sendo o sofrimento uma realidade mais ampla que a dor é também mais complexa. Normalmente, associamos a dor a uma realidade física, a uma lesão, actual ou potencial. O sofrimento seria mais do âmbito psíquico.

Quando afirmamos que alguém está a sofrer referimo-nos a um estado psicológico, aos seus sentimentos, à sua alma. No entanto, apesar desse carácter espiritual, o sofrimento também se exprime sensivelmente e, por isso, ele é visível; mas trata-se, fundamentalmente, do reflexo de um estado mental, provocado por uma lesão dolorosa.

Contudo, existem outras situações que nos fazem sofrer e que não têm nada a ver com a dor.

No doente terminal são inúmeras as situações que podem conduzir ao sofrimento: a começar, o medo da morte ou o medo e a angústia provocados pela incerteza quanto ao modo como se irá morrer.

A certeza da morte próxima e a ignorância relativa a essa mesma morte, porque agudizadas no doente, podem conduzir a um estado de grande sofrimento. Também fará sofrer a consciência que se tem da própria situação que se está a viver quando esta é degradante e humilhante.

O sofrimento não acontece por antecipação. O sofrimento será sempre actual, mesmo referindo-se a uma hipotética situação a ocorrer no futuro.

Resulta de tudo isto que dor e sofrimento são realidades distintas que podem estar associadas ou não; a dor pode ou não provocar sofrimento e este poderá provocar uma experiência dolorosa, na medida em que esta pode ser definida, em sentido estrito, como uma experiência desagradável associada a lesão real ou possível.

Ora, um dos argumentos contra a eutanásia vem dos médicos que tratam a dor, nomeadamente, aqueles que trabalham em unidades da dor, secções hospitalares dedicadas exclusivamente ao controlo e domínio da dor, com base num aprofundado estudo da dor e com pessoal altamente qualificado.

A primeira unidade da dor foi criada nos anos sessenta em Washington por John Bonica, autor de Tratamento da Dor, publicado em 1953 e considerada a Bíblia da algologia.

Em Espanha, a primeira unidade da dor foi implantada no Hospital 12 de Outubro de Madrid, sob a direcção de José L. Madrid.

O tratamento da dor recorre a diversas metodologias. Aí, 80% dos casos são tratados farmacologicamente, por via oral ou venosa. Existem, para os outros casos, terapias mais agressivas, tais como, secção de nervos, implante de eléctrodos, crioterapia. Também se pode recorrer à acupunctura eléctrica, hipnose ou relaxação. Segundo aquele médico, a Eutanásia não se justifica se tivermos em conta as dores físicas do enfermo, perante os grandes avanços da algologia e da medicina paliativa.

Contudo, mesmo que assim se admitisse, ficariam por resolver as dores psicológicas e espirituais que assaltam o paciente na sua fase terminal. Por outro lado, afirma também que a depressão respiratória causada pela administração de morfina já é controlável.

Mas será que as dores físicas são todas controláveis? E que peso têm as tais dores psicológicas e espirituais no conjunto do sofrimento do paciente e para as quais não existe qualquer terapia?

A dor isola o doente da realidade que o rodeia, porque a dor capta e monopoliza a atenção do doente. A dor crónica acaba por se tornar uma realidade omnipresente e, por isso, obsessiva.

O doente afectado por dores crónicas focaliza a sua atenção na dor que o faz sofrer, impede-o de dormir, deixa-o exausto e interrompe o seu relacionamento com o meio envolvente.

Aqui estão também incluídas as próprias pessoas, mesmo aquelas que lhe são mais próximas. Tudo aquilo que interessa e apenas o que lhe interessa é o alívio das dores. É o único objectivo que o mobiliza verdadeiramente.

A dor crónica, ao contrário da dor aguda, domina o doente. Todas as actividades que não estejam relacionadas com o alívio das dores não lhe interessam e representam um enorme esforço. A sua capacidade de raciocinar também fica debilitada. A depressão ataca facilmente estes doentes. Incapazes de dormir, os doentes com dores crónicas ficam completamente exaustos.

a-pior-dor-do-mundoSe a dor não é apenas um acontecimento patológico, um acontecimento de base corporal, então o tratamento da dor não passa apenas por terapias que incidam sobre o corpo. No doente terminal a dor mais profunda não é a que resulta do corpo que tenho, mas deste corpo que eu sou. E o corpo que eu sou naquela fase é a revelação mais evidente, cruel e miserável da minha finitude.

A consciência dolorosa da finitude é a consciência do ser prestes a deixar de ser.

A dor do doente terminal é uma dor obsessiva, porque o indivíduo encontra-se possuído pela dor, a dor tomou conta dele, da sua vontade, dos seus desejos, da sua consciência.

Subitamente, ele já não é mais do que esta dor. A dor não é um predicado, um acidente ou um incidente. A dor tornou-se ontológica. Vire-se para onde se virar, o ser é dor, o seu ser é a experiência dolorosa de ser. Está resumido à dor que ele é, a dor tomou conta do ambiente à sua volta, ocupou todo o tempo e o espaço, manipula os outros e o olhar dos outros.

A dor também acaba por se estender àqueles que o rodeiam. Mesmo que o tentem consolar, é a experiência da dor que subjaz ao seu discurso. O doente acaba por sentir também a dor crónica dos outros, a dor que apenas se atenuará no momento do seu desaparecimento.

Tornou-se impossível situar a dor, o que poderia constituir uma boa maneira de a dominar. A dor cercou-o e ocupou-o. A dor ocupa-o e já não existe território neutro, não existe escapatória. Não existe território sem dor.

E assim, progressivamente, surge a consciência de que a morte liberta. Liberta aquele que morre e liberta aqueles que o rodeiam e que o amam e que também experienciam a dor.

Como poderemos recusar um pedido insistente do doente que se quer libertar e que nos quer libertar, praticar esse momento último de dignidade com que reafirma, também, o seu amor pelo outros. Poderemos nós recusar-lhe esse acto de amor?

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