Nota de apresentação da obra Sonhos Caminhantes de José Luís Hopffer AlmadaSonhos Caminhantes (2017), dado o rigor do seu propósito, a profundeza da apreensão que José Luís Hopffer C. Almada faz da emigração e diáspora cabo-verdiana; etnias africanas deslocadas para a ilha de Santiago e escravizadas; migrações internas; emigração para África, América e Europa, voluntária e forçada; “terra-longismo”; exílio: identidade, polivalência e heteronímia (Gomes, 2010), deve, em nosso entender, estatuar-se como um fidedigno testemunho do seu autor. Portanto, além da sua importância poética, constitui, ainda, e impõe-se como um documento fundamental e contribuitivo, para qualquer estudo de natureza literária/cultural que se possa fazer sobre a literatura cabo-verdiana e sobre o poeta.
José Luís Hopffer C. Almada, como ensaísta, ou seja, na condição do heterónimo Tuna Furtado, prevê no texto «Reflexões preliminares – A aventura diaspórica do povo caboverdiano»: «Terras da abundância, mas ainda assim Terras-longe onde, entre gentes gentis e gentes gentios, o expatriado das ilhas intentou, mediante árduo e infatigável labor, angariar os meios para para a condução de uma vida digna na terra-mãe, para onde sempre almejava regressar, mesmo que fosse para, tão-somente, esperar a morte, depois de amiúde, se ter (ou melhor, se fazer) enriquecido com novos bens materiais e simbólicos, com novas experiências e inéditos valores civilizacionais, colhidos nas terras da imigração (Almada, 2017:17).
A ideia da viagem faz com que, por vezes, o poeta seja um saudosista, como podemos confirmar na seguinte passagem do poema «Nas mortes de Corsino Fortes, Mário Fonseca, João Manuel Varela, Ovídio Martins, Manuel Lopes, Gabriel Mariano e Baltasar Lopes da Silva, que também é o poeta Osvaldo Alcântara»: «Hei-de sentir / saudades estranhas / de terras estranhas situadas / para além das cidades de dakar, belo horizonte, / joanesburgo, porto, roterdão, marselha, maraquexe / casablanca, bissau, conacry, rio de janeiro, são paulo / bagotá, ceuta, gibraltar e de outras urbes das terras-longe.// […] (Idem:77).
E porque, em nosso entender, há na obra do autor, uma vibração entre os átimos da sua prática pessoal, do seu tempo, divulgando a sensatez, o raciocinar e o proceder de uma época, Sonhos Caminhantes (2017), uma obra que representa o engrandecimento do plausível, do ambígeno, do incerto e das suas polifonias, mimoseia o leitor com indícios, a partir de uma instigante expedição, que, desagregando da Terra-progenitora para a Terra-distante, o poeta se redepara consigo próprio em Assomada, igualmente ela Terra-distante dentro da Terra-progenitora. Trata-se, portanto, de um sujeito poético que se sente só, que sente saudades dos seus companheiros que partiram para o norte, a terra de muitas oportunidades, enquanto o sul é a base que sustém essa ideação.
Em «Autobiografia Ortoníma» (quinta variação), na circularidade do poema, conforme defende Simone Caputo Gomes, «partindo de Assomada (interior da ilha de Santiago, a de mais antiga ocupação em Cabo Verde) para a vivência em Leipzig e consequente assunção de uma consciência ainda mais profunda de uma identidade cabo-verdiana-santiaguense, o poeta ortónimo desenha o seu percurso pessoal […]» (Idem:162), como se nota na seguinte transcrição: «Nasci numa aldeia / à sombra de um sobrado / e da austera penumbra das montanhas // Criança ainda / larguei as exaustas margens das ribeiras / galguei a húmida orografia da Assomada // […]. // De costas para o mar / insinuei-me // – para além da ilha – / na lenta e transparente / caminhada das nuvens / para de Leipzig / loucamente beijar / com amor e com ardor / com ternura / a neve com odor / a carvão e melancolia / para de Lisboa / intemporalmente soletrar / com ardor e com amor / com doçura / a branca pele / cinzelada de arco-íris // […]» (Idem:33-35).
Desse modo, as «noites de Assomada» assumem um papel importante no seu imaginário poético, visto que são elas que delineiam um encontro com o poeta que exorciza a longitude, denega aberturas e defende a eventualidade de supor o longismo, como podemos notar na seguinte transcrição do poema «Terra-longe/Diásporas (Todas as moradas da saudade)», um texto que, segundo José Luís Hopffer C. Almada, também integra o livro Germinações do Tempo da Humidade e da Provação (Seis Poemas/Livros), ainda parcialmente inédito, e, na sua versão mais abreviada e nominativa, do símile intitulado Rememoração do Tempo e da Humidade, recentemente editado pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda, de Portugal» (Idem, 124): «Ai noites de Assomada / nas noites dos Bravas / nas Américas solfejando livres o crioulo / entoando a morna ensaiando o fox trot / adormecendo ao som das estórias das ilhas / inventando uma nova Alvorada / versáteis anónimos camaleónicos / entre Negros e outros Afro-Americanos / Brancos Protestantes Anglo-Saxónicos / Católicos Irlandeses Italianos e Açorianos / Porto-Riquenhos Cubanos Colombianos // […]» (Idem, 136).
Sonhos Caminhantes (2017) é, pois, uma obra composta por poesias inéditas em livro e outros, que, segundo Simone Caputo Gomes, «agora refundidos, já publicados em À Sombra do Sol, Volumes I e II, Assomada Nocturna e Assomada Nocturna (Poema de Nzé di Sant’y Águ), sempre sob o critério do autor de reelaborar e aperfeiçoar os seus textos, dando-lhes novas versões. Por exemplo, o longo poema «Terra-Longe/ Diásporas (Todas as Moradas da Saudade” retoma, refunde, alarga e desenvolve algumas estrofes de Assomada Nocturna (Poema de Nzé di Sant’ y Águ)» (Idem: 151). Trata-se, pois, de uma obra que certifica o profundo conhecimento de José Luís Hopffer C. Almada tanto da arte da poesia como da realidade cabo-verdiana como poeta, crítico literário, ensaísta, editor, pesquisador da cultura e actor de movimentos culturais.
A dita obra conta com «breves notas biográficas» do autor; um «prefácio», de Gabriel Fernandes; «Reflexões preliminares – A aventura diaspórica do povo caboverdiano», da autoria de Tuna Furtado; uma «bibliografia»; uma «Autobiografia ortoníma (Quinta variação)»; os poemas «Caminhos insepultos (poemas de Erasmo Cabral de Almada)»; «Roça inominada»; «Exílio (terceira versão)»; «Leipzig (segunda versão)»; «Untersagte Strassen (Caminhos Interditos)»; «Anti-Lembranças»; «Terra-longe/Diásporas (Todas as moradas da saudade) e outros poemas de Nzé de Sant’y Ago»; «Parábola sobre o castanho sofrimento e a verde redenção das criaturas das ilhas»; «Nas mortes de Corsino Fortes, Mário Fonseca, João Manuel Varela, Ovídio Martins, Manuel Lopes, Gabriel Mariano e Baltazar Lopes da Silva, que também é o poeta Osvaldo Alcântara»; «Não há dia não há manhã (terceira versão)»; «Terra-longe/Diásporas (Todas as moradas da saudade)»; e um «posfácio» de Simone Caputo Gomes.
É uma obra que constitui a mais cristalina manifestação de coabitação da inteligência e da comoção. Ordena um itinerário e patenteia uma exposição que reproduz devaneios e exprime insonolências. E para utilizar uma expressão muito cara ao autor, conforme refere o supracitado Gabriel Fernandes, «os sonhos não exaurem a insónia e esta não impede aqueles. Dir-se-ia que da insónia terá nascido o ensaísta e dos sonhos, o poeta. Ambos remetem-nos para uma realidade peculiar e cambiante, a cabo-verdiana, permeada por seres que nascem e vivem sob o imponderável» (Idem, 11). Deste modo, Sonhos Caminhantes (2017) é, acima de tudo, uma viagem para o poeta, e para o leitor para quem num vértice de voluptuosidade, se expõe/se exibe reestruturando os trilhos do poeta. Todavia, engana-se, segundo o mesmo autor, «quem esteja à espera de uma viagem qualquer, de um errante sonhador» (Idem, ibidem).
A obra de José Luís Hopffer C. Almada põe-nos, ainda, segundo o autor supracitado, «perante um viajante que se exterioriza no mundo, e não interioriza o mundo. Diferentemente do evasionista que se entrega e se esquece, o nosso poeta vai, sem se esvair. Pleno de si, e impregnado do ar de Biranda, ele chega a Leipzig, perscrutando-a e reenquadrando-a. Fá-lo, de olhos fixos no local de onde partiu e para onde regressa; fá-lo com um sentido universal, a partir de um ponto particular e quiçá, anódino» (Idem: 12), como podemos certificar no seguinte excerto do poema «Leipzig (segunda versão)», dedicado a Afonso Semedo, Rui Évora, Txicosa Marta, Ká, Toi Neves, Aristides Lima e Isabel Spencer: «Lâmpadas de lágrimas / No tecto da cidade / nervos e sangue / nos braços das plantas / prantos sobre os prados / sobre os pardos contornos / do ventre da cidade // […] // Leipzig a cidade / fatigantemente estrangulada / e levianamente sorrindo / em esperança congelada ânsia artificial / […] // Cidade cidade / Cidade-desespero / Cidade-madrugada / sonhos coagulados / ânsia de braços / no ângulo esquerdo da tua pupila / sobre a letargia da cidade» (Idem: 45-47).
Em suma, trata-se, de uma obra onde o poeta também traça uma «parábola da aventura crioula» iniciada com a chegada de povos africanos de diferentes etnias.
Almada, José Luís Hopffer C. 2017. Sonhos Caminhantes. Praia: Pedro Cardoso Livraria
Por Hilarino Carlos Rodrigues da Luz, CHAM, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa