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Sexta-feira, Abril 26, 2024

Tardam Liberdades, infelizmente…

Francisco Oneto
Francisco Oneto
Professor Universitário

Infelizmente, muitos dos meus concidadãos continuam ainda a não querer reconhecer que a multiplicidade de usos possíveis para o cânhamo – industriais, alimentares, medicinais, estéticos ou recreativos – tornam a canábis numa das plantas mais extraordinárias para o benefício da humanidade (bem como das abelhas ou das aves) e do planeta.

Tudo o que é fabricado com petróleo e seus derivados pode igualmente ser fabricado com cânhamo, com a vantagem de que o seu cultivo intensivo não requer fertilizantes nem adubos e não esgota os solos, antes os enriquece, exigindo mão-de-obra e criando emprego.

Com ela pode-se fabricar combustível e óleos para máquinas, diversos tipos de produtos alimentares riquíssimos e equilibrados em termos nutricionais, medicamentos, papel, tecidos, detergentes, sabão, produtos de beleza, moldes, materiais de construção, etc.

A lista é imensa e alguns países europeus, como a Alemanha, têm um cada vez mais importante sector industrial assente na produção desta planta.

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Propaganda contra o cânhamo, EUA, 1942

Infelizmente, a sua proibição nos EUA em 1937 – puro fascismo social em contextos de inferiorização e perseguição dos principais grupos de utilizadores (afro-americanos e mexicanos) – acompanhando o extraordinário desenvolvimento de um modelo de civilização assente no uso de combustíveis fósseis e no colonialismo, deu origem ao regime de proibição que todos conhecemos, com os incontáveis abusos e crimes contra as liberdades individuais, enchendo-se as prisões de cidadãos inofensivos e transformando-as em negócio imoral para empresas abjectas.

Assim cresceu e se alimentou o crime organizado e o tráfico global de substâncias ilícitas, tantas vezes incentivado e aproveitado para gerar receitas que alimentaram exércitos ao serviço da economia imperial, de que o caso Irão-Contras, do ópio Afegão, ou da mafia que garantiu a rota da heroína dos Balcãs, são os mais conhecidos, a par com as largas dezenas de milhar de mortos causados pelas guerras dos cartéis mexicanos.

Mas no caso do cânhamo, apesar do poder e da força daqueles interesses a quem convém criminalizar uma planta tão útil ao bem-estar da humanidade, o regime proibicionista vai caindo, lentamente.

No Uruguai ou no Colorado, por exemplo, há já liberdade para quem quer plantar cânhamo e usá-lo da maneira que lhe aprouver, e o Canadá anunciou já o fim da insustentável tirania proibicionista para o próximo ano de 2017.

Infelizmente, um dos principais argumentos dos inimigos da legalização é verdadeiro. Uma das mais tristes consequências do proibicionismo foi a de ter induzido o crime organizado a alterar a planta naquilo que ela tinha de melhor para os amadores da recreação canabinófila: décadas de clonagem e de produção de cânhamo em hangares com luz artificial e doses maciças de adubos e fertilizantes venenosos usados com o objectivo de produzir plantas muito pequenas e muito pesadas (cujas flores rendem mais dinheiro, portanto), transformaram a saudável planta, numa droga ordinária, malcheirosa e ocasionalmente potenciadora de ataques de pânico e mesmo de psicoses entre adolescentes mal informados, e a razão é simples: os efeitos apreciados pelos psiconautas são o resultado da modulação natural, harmoniosa, dos diversos canabinóides contidos na planta, fruto do sol, da terra, do vento e da chuva.

O cânhamo oriundo das sementes comercializadas actualmente tem percentagens elevadíssimas de apenas um dos canabinóides, o tetra-hidro-canabinol – justamente o que é valorizado por um mercado que procura efeitos potentes – em detrimento do canabidiol e de outros elementos moduladores do efeito psicoactivo. Por isso a “erva” hoje não presta. Ponto.

Infelizmente, o papel dos jornalistas em todo este processo é frequentemente negligente, a começar, evidentemente, pelo próprio termo “droga”, usado tantas vezes para descriminar os utilizadores de cânhamo face aos dependentes de drogas aceites socialmente, como o álcool e os psicotrópicos, cujo abuso é muitíssimo mais nocivo.

Um dos erros repetidos à exaustão consiste na adopção acrítica de uma unidade de medida descritiva das quantidades apreendidas pelas polícias, a chamada “dose individual”. Esta ficção limita-se a reproduzir sub-repticiamente o discurso proibicionista encastrado no ofício da repressão e não se baseia em nenhum elemento científico.

Volume dedicado à cultura do cânhamo impresso em Lisboa em 1798
Volume dedicado à cultura do cânhamo impresso em Lisboa em 1798

Interessante é, também, verificar a variação do descritivo de classe etária consoante a notícia: se for um acidente de automóvel ou um feito académico ou profissional, por exemplo, serão “jovens”, mas se for uma apreensão de “droga”, com as mesmas idades serão logo “homens”.

Outro absurdo dito e repetido acriticamente consiste em apelidar o cânhamo de “estupefaciente”, o que é errado, pois o cânhamo não provoca nem narcose nem overdose.

Infelizmente, e ao contrário da presente tendência geral nos EUA (um dos tradicionais bastiões do proibicionismo) e no Canadá, a situação portuguesa mantém-se num limbo. Consumir produtos de cânhamo não é crime (apesar de haver ainda repressão e de ser socialmente desqualificante), mas possuir sementes ou plantas para consumir livremente sem recorrer ao comércio ilegal, é punível por lei.

Assim, apesar dos grandes elogios ao modelo português de descriminalização do consumo, continuam a surgir nos jornais, recorrentemente, notícias como a de ontem: três “homens” com idades entre os 19 e os 24 anos foram detidos por terem feito crescer em terreno público 17 plantas de cânhamo e terem em sua posse 27 “doses individuais” de haxixe.

A mim parece-me bem que as polícias são precisas para coisas bem mais importantes e urgentes, se é de crime que falamos. Por isso, defendo hoje a consagração da liberdade plena para o uso desta planta e pugno por um trabalho jornalístico que não se deixe acomodar aos discursos de circunstância das polícias.

Só assim se poderá, futuramente, vir a recuperar as saudáveis estirpes africanas, asiáticas e sul-americanas, e eliminar definitivamente a “erva-de-aviário” criada pelo proibicionismo.

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