Tutti-Frutti em Lisboa
Aquilo que veio a ser conhecido por operação Tutti-Frutti terá tido início com uma denúncia, seguida, como vem sendo comum nas investigações relativas a políticos, por escutas telefónicas.
Dez anos depois é conhecida a acusação, não sem que, praticamente desde o início, tenham sido divulgadas na comunicação social múltiplas imputações e nomes de presumíveis suspeitos.
Sessenta autarcas e empresários acusados na Operação Tutti-Frutti. Medina ilibado
Um dos aspectos referidos nas primeiras divulgações foi estar em causa a oferta de lugares de assessor no âmbito de assembleias municipais, designadamente a de Lisboa. André Ventura, então ainda ligado ao PSD, teria chegado a ser investigado em conexão com a oferta de um lugar de assessor a um determinado indivíduo, que não se terá concretizado, vindo ambos a reencontrar-se no partido entretanto fundado pelo primeiro. Neste, a “contratação” de assessores parlamentares serviu como passo intermédio para angariar futuros candidatos, como uma antiga “deputada dos animais” por Setúbal, neste momento já integrada como membro de pleno direito no grupo parlamentar do CH, e uma antiga deputada do PSD/TSD que se desvinculou recentemente do seu partido para se candidatar à Presidência da Câmara de Setúbal pelo CH.
Noutros quadrantes políticos e sem, que eu saiba, relações com a Tutti-Frutti, as assessorias também são apreciadas: o primeiro presidente da Junta de Freguesia do Parque das Nações aceitou concorrer em futuro mandato à Assembleia Municipal de Lisboa como independente na lista do PS, cedendo o seu espaço político na freguesia ao referido partido(i) e recebeu o direito de ter um gabinete de apoio enquanto deputado municipal; um antigo socialista eleito deputado municipal pelo BE exerceu funções como, julgo, chefe do gabinete do famoso vereador Robles e, quando este caiu, desvinculou-se do BE na Assembleia Municipal.
Veiculada para a comunicação social como matéria investigada na operação Tutti-Frutti estaria a suposta existência de um acordo entre o PSD e o PS em Lisboa para cada um dos partidos apresentar candidatos fracos em algumas freguesias, acordo que por parte do PS teria sido assumido por Fernando Medina, presidente da Câmara, ou por este e pelo seu vice-presidente, Duarte Cordeiro. O Ministério Público terá, ao que percebi do que foi publicado, acabado por reconhecer que a existir tal acordo, este não poderia ser atacado por violação de qualquer lei. Pessoalmente acredito que se tratava de meras especulações captadas nas conversas escutadas entre membros do PSD de Lisboa.
Aparentemente terá estado em acção um grupo de militantes do PSD enraizado em alguns sectores da distrital de Lisboa que terá tentado neutralizar a vereadora do PSD Teresa Leal Coelho e o “candidato do PSD à Presidência da Assembleia Municipal” José Eduardo Martins como forma de manter a influência na própria Distrital e também de viabilizar a realização de negócios por parte de empresas de que eram titulares alguns dos seus membros, sob a forma de venda / prestação de serviços às freguesias ou a entidades particulares apoiadas pelo município. Os vendedores / prestadores de serviços não seriam necessariamente lisboetas: um dos acusados é actualmente deputado por Bragança e vereador em Barcelos. Quanto às entidades envolvidas não se restringem ao âmbito lisboeta: um dos acusados foi já deputado e estava a apoiar a preparação das eleições locais no Porto: o em tempos célebre “deputado voador”(ii) que admitiu já quase não se lembrar de ter exercido as funções conexas com a acusação.
Haverá aqui verdadeiramente Tutti-Frutti? Parece-me um tanto forçada a tentativa de envolvimento de Fernando Medina nos apoios à Associação Amigos do Rugby de Belém em relação à qual ele negou publicamente ter praticado qualquer acto mas que o Ministério Público diz ter ficado fora da acusação por não se ter provado que tivesse tido consciência de estar a beneficiar indevidamente a associação. Assim, Medina fica solto do anzol por ser, ao que parece, demasiado tolo para ter actuado intencionalmente. A vereadora Teresa DE Drummond que ele abandonou com outros solitários socialistas quando renunciou à câmara após a derrota, é acusada de factos praticados quando era presidente da Junta de Freguesia de Benfica, e renunciou ao mandato por ter consciência de que o assunto não ficaria esclarecido até às eleições(iii). A Presidente da Junta de Freguesia da Penha de França vem acusada por uma aquisição que teve lugar em 2016 e para a decisão da qual terá sido corrompida com o pagamento de uma comissão.
No PSD estes desenvolvimentos têm sido considerados graves, por envolverem deputados que foram convidados a suspender ou renunciar ao mandato, e no plano autárquico o Presidente da Distrital de Lisboa, que suspendeu o mantado de vereador, e o Presidente da Concelhia, Luís Newton, que se mantém em funções como Presidente da Junta da Estrela. Muito apropriadamente a Comissão Política Nacional deliberou a avocação da competência para aprovar as candidaturas no concelho de Lisboa.
No PS registou-se, ao que li na Internet, um desenvolvimento isolado mas significativo: Alexandra Leitão, indicada como candidata a presidente da Câmara de Lisboa, terá convidado a sua camarada de partido presidente da Junta de Freguesia da Penha de França a renunciar ao mandato. Se o Ministério Público tem provas do pagamento de uma comissão – e a acusada tem a obrigação moral de facultar ao seu partido a acusação e a prova em que se apoia, plenamente de acordo.
Em artigo recentemente publicado aqui no Jornal Tornado: PS Lisboa: a disputa eleitoral entre Miguel Prata Roque e Carla Tavares… e o mais que se lhe seguiu escrevi, invocando a qualidade de eleitor por Lisboa.
No PS está tudo por fazer – discussão programática, negociação de alianças, saneamento de escândalos nas freguesias. Não obstante, ficarei atento.
Alexandra Leitão, em relação a este caso da Penha de França, encontrou tempo para dar um pequeno passo. E os seguintes?
O Ministério Público estará entretanto a notificar as freguesias de que podem constituir-se assistentes no processo crime para pedir indemnizações aos respectivos presidentes de Junta, o que julgo ser inédito mas poderá ser pedagógico.
Tutti-Frutti em Espinho?
Muito mais Tutti-Frutti parece ser o caso dos presidentes da Câmara de Espinho, em que a um Presidente PSD – Joaquim Pinto Moreira – que esgotou o limite de mandatos e que foi eleito seguidamente deputado, ficando Presidente da Comissão de Revisão Constitucional, sucedeu na eleição seguinte um Presidente PS, sendo que, por denúncia de um promotor imobiliário, vieram a ser os dois acusados de pedirem pagamentos para autorizar construções. Só que o segundo que ficou em prisão preventiva, renunciou quase de imediato ao mandato como presidente da Câmara, continuando todavia em prisão preventiva, enquanto que o primeiro demorou algum tempo a renunciar ao mandato de deputado.
O julgamento já dura há algum tempo, sendo que o socialista jura que não foi corrompido, e o social democrata, que não chegou a ser preso, jura que não é corrompível. Pode ser que tenham ambos razão. Em todo o caso teria algum interesse perceber como Luís Montenegro, inicialmente advogado com prestação de serviços à Câmara de Espinho, depois Presidente da Assembleia Municipal, lidou com a gerência de Joaquim Pinto Moreira. Quanto às repercussões da situação nas perspectivas do PS, a vice-presidente da altura sucedeu ao ex-presidente encarcerado e nomeou um novo vice-presidente. Há alguns dias, contudo, a câmara socialista explodiu: a concelhia do PS resolveu candidatar às autárquicas o actual vice-presidente e a presidente, ferida, retirou-lhe a confiança.
A telenovela merece ser seguida.
De Espinho para Spinum
Ia dedicar algumas linhas à grande apetência dos membros do Governo pela criação de imobiliárias, que por si não é ilegal – o problema com Pedro Siza Vieira foi que, para além de criar uma imobiliária com a esposa, ficou a ser seu administrador, o que era incompatível com o ser membro do Governo – quando se tornou conhecida a criação por Luís Montenegro, em vias de aceder à liderança do PSD, ainda na oposição, de uma empresa que ficou sediada na sua casa (reconstruída) de Espinho com a denominação de Spinumviva, em que aparentemente os sócios eram a sua esposa e os dois jovens filhos.
Trata-se de um assunto que não é fácil, mostrando da parte de Luís Montenegro a intenção de envolver os factos numa espécie de cebola. Quando alguma informação é conhecida, logo se percebe ser necessário obter respostas adicionais.
Assim, a existência de uma entidade detida aparentemente pela esposa de Montenegro e filhos é uma realidade desde a eleição para a liderança do PSD a partir da qual o Presidente, por norma interna que julgo manter-se, é remunerado por verbas do Partido em nível correspondente ao de Ministro. A Spinumviva vai obtendo receitas dos clientes, e uma parte reverte para os familiares de Montenegro com o estatuto de remuneração. Do ponto de vista legal nada obsta a que Montenegro contribua para gerar este tipo de receitas, mas a partir do momento em que se torne Primeiro-Ministro esta contribuição ainda que pro bono poderá ser vista como legalmente proibida.
Este aspecto deveria ser clarificado através de impulso da representação do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional – a exemplo do caso de Pedro Siza Vieira – não exigindo qualquer enquadramento em sede criminal.
Creio que foi este risco que levou Luís Montenegro a promover a transmissão da propriedade da Spinumviva para os filhos e a tirar a sede da casa de Espinho onde a família habita. Uma possível acção de perda de mandato por incumprimento da obrigação de exclusividade deixará de ter oportunidade.
Outro aspecto susceptível de ser questionado é a continuidade como clientes, apesar da ausência ostensiva de Montenegro, de um conjunto de empresas de alguma dimensão, que certamente conhecem a situação e poderiam optar por outro prestador de serviços, mas estão confortáveis com essa continuidade. A comissão de inquérito anunciada pelo Partido Socialista poderá criar aqui perturbações mas será legítimo ir por essa via?
Aliás as cascas da cebola entretanto afastadas já revelaram que a Spinumviva está a operar com dois modestos colaboradores: um jurista não inscrito na Ordem e uma advogada, antiga dirigente da JSD, casada, se bem percebi, com outro social democrata, que já foi membro de uma sociedade de advogados com Hugo Soares, actual Secretário-Geral do PSD e Presidente do Grupo Parlamentar e que terá indicado na Ordem como morada profissional a da sociedade de advogados a que nunca pertenceu e de que o marido já saiu. Porque a Ordem exige uma morada. Apesar de estar a escrever isto no Carnaval tenho vontade, não de rir, mas de chorar. Deve ser da cebola.
Foi entretanto revelado que os jovens filhos de Montenegro compraram em 2023 um apartamento em Lisboa, próximo de onde mora Cavaco Silva, e que em 2024, depois de ter passado na Assembleia o Orçamento do Estado para 2025, os seus pais compraram um apartamento no mesmo edifício. Sem recurso ao crédito, lê-se por aí, mas quem pode, pode.
Posteriormente à fundação da Spinunviva os seus Estatutos terão sido alterados por forma a permitir a realização de operações imobiliárias mas a sociedade não realizou ainda quaisquer operações desse tipo. Estando actualmente como seus únicos sócios os filhos de Montenegro estes poderão a todo o tempo aumentar o capital por entrega do seu apartamento de Lisboa que passará a ser um activo da sociedade, com o regime fiscal inerente. Assim como os pais, quando tal já não levantar problemas, poderão regressar à condição de seus sócios, entregando para realizar um aumento de capital o apartamento agora adquirido. Quem sabe, sabe.
Fico em todo o caso com grande admiração por Luís Montenegro, advogado e empresário.
Notas
(i) O PS viria a ganhar a Junta, perdendo-a no actual mandato para a coligação de direita.
(ii) Que tive ocasião de conhecer quando exerci funções como dirigente sindical.
(iii) Nestes momentos sinto à falta de André Freire, que sentiu muito os momentos da sua freguesia.