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Segunda-feira, Abril 22, 2024

Uma revolução das Arábias

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.
  1. O furacão Mohammed Bin Salman

Nada há no mundo contemporâneo tão importante como a revolução que o príncipe designado Mohammed Bin Salman está a trazer à Arábia Saudita, desmantelando, um por um, os pilares do poder clerical fanático à sombra do qual o país foi criado há um século atrás.

Mohammed Bin Salman (MBS) começou por transformar um hotel em prisão de luxo onde enfiou a camada mais reacionária e corrupta da liderança do regime (e da família, o que quer praticamente dizer o mesmo) até que os prisioneiros aceitassem ceder bens e estatuto, quebrando o mais importante e estabelecido dogma da inviolabilidade dos privilégios dos dirigentes do regime e mostrando até onde ele estava disposto a ir.

Daqui, MBS passou aos costumes, enfrentando a polícia clerical que aterroriza os jovens, libertou o teatro e o cinema – e desenvolveu a mais radical revolução que teve lugar no mundo árabe desde tempos imemoriais. Passou agora à bandeira e hino nacionais, de onde ele pretende eliminar os símbolos do suprematismo e fanatismo islâmicos, num gesto de imenso significado.

Tudo isto foi feito numa lógica que só podemos comparar à do despotismo iluminado da Europa da Idade Moderna, que teve entre nós como principal símbolo o Marquês de Pombal. Quer isto dizer que a revolução em curso não se inscreve no quadro de um Estado de direito e menos ainda de um regime liberal democrático, o que não teria sido praticável.

A realidade levou MBS rapidamente a entender que é o fanatismo islâmico e a sua vasta rede de alianças a principal ameaça que pesa sobre a sua cabeça, e que são os países livres e democráticos – o que na região, se resume praticamente a Israel – que são os seus principais aliados potenciais.

A realidade ensinou-o também a contemporizar e recuar para salvar a sua posição. Foi assim que quando a Administração Biden entronizou os taliban no Afeganistão, ele se viu forçado a recuar, fazendo as tréguas com o ramo fanático da família, encimado pelo Emir Sheikh Tamim bin Hamad Al Thani que controla o Qatar e é agora o comandante do fanatismo islâmico wahabita; lançando pedidos de paz ao Irão, que há décadas procura conquistar o país; e contemporizando com o fanatismo islâmico paquistanês, porque o Paquistão tem o único exército que poderá salvar a Arábia Saudita da invasão iraniana.

A capacidade de MBS para controlar o Estado e evitar que se arme uma contrarrevolução contra ele não está garantida e a sua sobrevivência está longe de ser assegurada. Posto isto, MBS não perdeu o Norte, e encorajou tacitamente as monarquias do Golfo a fazer a paz com Israel e a seguir a sua agenda de liberalização do regime.

  1. O complot fanático contra a revolução árabe

Os primeiros alvos externos da contrarrevolução fanática iraniana foram o Iraque e a Arábia Saudita, sendo que só por fruto das circunstâncias o reinado saudita escapou ao ‘golpe de Meca’ inspirado e instigado pela revolução islâmica iraniana de 1979.

Os golpistas da altura, agregados num clã fanático que acusava o reino de ter cedido à cultura e vida ocidentais e que queria o regresso aos princípios puros do fanatismo islâmico, inspiraram, entre outros, um então jovem chamado Osama Bin Laden.

O regime tentou numa primeira fase concorrer com Teerão em fanatismo, financiando generosamente uma rede mundial de pregação fanática islâmica, aliando-se ao Paquistão para concorrer com a influência fanática iraniana, e tentando concorrer um pouco por todo o mundo, com resultados assaz decepcionantes.

As contradições internas do regime foram-se também acentuando, com a família real a dividir-se em três dezenas de clãs oficiais e muitos mais ainda informais, segundo me assegurou um príncipe dissidente saudita exilado em Paris e que, também ele, acabou por ser vítima fatal das guerras de poder.

O 11 de Setembro serviu para mostrar até que ponto o falhanço das tentativas de conciliar a coroa com a ideologia fanática islâmica tinha sido total. O golpe organizado por Osama bin Laden – organizado no Afeganistão com apoios institucionais no Irão e no Paquistão – contou com uma imensa cumplicidade de personagens situados a vários níveis do aparelho de Estado saudita. Se o Ocidente não tirou as devidas lições do 11 de Setembro, houve quem acabasse por fazê-lo na Arábia Saudita, e é nesta altura que começa o processo de tomada de consciência no seio da família real de que só a ruptura com o fanatismo islâmico permitiria a sua sobrevivência. É deste processo que vai surgir a revolução de MBS.

  1. A infiltração do fanatismo no Ocidente

Uma das vítimas da purga ordenada por MBS em prisão de hotel a que acima fizemos referência foi o príncipe Alwaleed Bin Talal Bin Abdulaziz Alsaud, personagem do ramo fanático do culto Wahabita, que passou agora a controlar apenas o Qatar, e que na última década passou a ser o investidor de referência da rede social Twitter e cuja rede de negócios passou pela família Trump.

Poderá ter sido ele ou outros a fazer a ponte entre o wahabismo radical do Qatar e a administração Biden. Em qualquer caso, há muito que não se via uma concertação tão profunda entre os EUA e as facções mais radicais do fanatismo islâmico que passou pela entrega do Afeganistão aos taliban e que se apresenta hoje abertamente num consórcio para disputar à Rússia o mercado europeu do gaz.

Se a Arábia Saudita não teve sucesso no controlo do fanatismo islâmico no mundo, o ramo wahabita do Qatar tem sido muito mais eficiente, porque tem conjugado o financiamento de uma rede de pregação fanática islâmica no mundo inteiro com a infiltração em todos os domínios importantes do mundo Ocidental, começando pelo desporto e pelos negócios, onde a parceria com Biden para disputar o mercado do gás europeu à Rússia ou a guerra total à exploração do gaz em Moçambique são dois dos seus mais assinaláveis sucessos.

Igualmente significativa, tem sido a sua capacidade de infiltração e controlo das principais redes de ONG ambientais e humanitárias, das redes sociais, e da imprensa institucional, sem as quais não se pode compreender a total distorção e inversão da verdade a que temos sido submetidos.

Como símbolo dessa realidade, temos por exemplo o recente relatório da Amnistia Internacional que acusa Israel de Apartheid, que repete a propaganda grotesca do racismo antissemita ocidental aliado ao supremacismo fanático islâmico que vira a realidade de cabeça para o ar.

Se alguma vez houvesse alguma seriedade nas preocupações anunciadas pela Amnistia Internacional, esta organização teria certamente saudado os passos corajosos da Arábia Saudita para terminar com o regime institucional semelhante ao Apartheid e criticaria os regimes em tudo semelhantes ao apartheid que difundem a calúnia de que é Israel e não eles que o praticam.

Eu, que fui fundador da Amnistia Internacional nos Açores há quarenta anos, só não fico chocado agora porque já há muito tempo que percebi como esta organização trocou princípios e valores pelos interesses de dirigentes e seus familiares.

A facilidade com que o fanatismo islâmico tomou conta do que foram antigamente os pilares da nossa sociedade livre e democrática – as ONG ambientais e humanitárias, a imprensa e os aparelhos de Estado das democracias – mostram-nos como estamos tão ou mais necessitados de uma revolução que as Arábias, uma revolução em que se compreenda que o dinheiro não é a única coisa que interessa no nosso mundo.

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