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Quinta-feira, Abril 25, 2024

A cozinha açoriana

João Vasconcelos Costa
João Vasconcelos Costa
Investigador e professor universitário (Virologia Molecular), depois dirigente de um instituto de investigação, ensino e cooperação, hoje reformado.

A cozinha açoriana. Melhor dito seria as cozinhas açorianas, com muitas variantes de ilha para ilha, mas há um forte fundo comum que nos permite simplificar usando o singular.Não conheço nenhum estudo rigoroso sobre as origens da culinária das ilhas açorianas. É razoável pensar que ela deriva das tradições locais portuguesas trazidas pelos primeiros povoadores, mas depois condicionada pelos produtos locais e por alguns factores históricos, como, eventualmente, o comércio das especiarias.

Sabe-se mais da origem social dos povoadores do séc. XV que da geográfica, que mais nos interessa para estabelecer relações entre a cozinha açoriana e outras cozinhas regionais portuguesas. O povoamento, que foi difícil, passando por viagens antecedentes só para lançamento de gado, criação e sementes, fez-se inicialmente em pequenos povoados, com pesado trabalho de arroteia das terras. Talvez não passasse das centenas ou muito poucos milhares a população dos primeiros povoados, mas expandiu-se rapidamente. S. Miguel, ao fim de algumas dezenas de anos, já contava com duas povoações importantes, Vila Franca do Campo e Ponta Delgada, para além da inicial do povoamento, a então chamada Povoação Velha. Na Terceira, já com o séc. XV adiantado, Angra e Praia eram núcleos importantes de povoamento, a justificarem ser cada uma sede de uma capitania do donatário.

O povoamento com base nas capitanias do donatário, com a origem diversificada dos capitães, provavelmente complica a elucidação das origens do povoamento. Os líderes do povoamento, a começar pelos capitães do donatário, eram provavelmente cavaleiros e escudeiros, em todo o caso não de alta nobreza, “criados” (no sentido histórico, não no actual) das casas dos donatários, primeiro o infante D. Henrique e depois o seu sobrinho e herdeiro, o infante D. Fernando, irmão de D. Afonso V. Mas nada garante que esses membros das casas dos donatários tivessem origens geográficas comuns. Sabe-se que o infante acolhe em Lagos (a sua verdadeira “escola”, porque a de Sagres nunca existiu) gente de variadas origens.

Não é desrazoável pensar-se que esses capitães tenham chamado ao povoamento principalmente os seus próximos e dependentes, domésticos e do campo. Se assim foi, as origens geográficas dos povoadores devem ser diversificadas, em função da origem dos líderes do povoamento. Infelizmente, a genealogia pretérita desses mesmos povoadores é muito incerta e não é geralmente referida por Frutuoso ou por outros cronistas posteriores.

Por outro lado, é de admitir, com boa base histórica, que, com o sucesso do povoamento e com a notícia da riqueza das terras, levas sucessivas de povoadores, isolados ou em grupo, tenham procurado a aventura dos Açores, vindos de origens incertas. Essa população difusa foi acrescentada com um número significativo de degredados, obviamente oriundos de todo o país, embora esses degredados só tenham sido enviados para S. Miguel e apenas durante o tempo da regência do infante D. Pedro.

Talvez seja mais simples mas também mais correcto considerar os Açores como uma grande mescla histórica e antropológica, a que o tempo, o isolamento e o contacto entre ilhas próximas deram uma coesão e unidade na diversidade bem características.

No domínio que agora me interessa, o da cozinha tradicional, e descontando a grande diversidade na unidade, entre as nove ilhas, volto a pensar que há semelhanças básicas significativas entre a cozinha meridional, alentejana e algarvia, e a cozinha de S. Miguel. Na base, são cozinhas em que avulta o pão, com grande profusão de açordas, de carnes pré-temperadas (no Alentejo com o pimentão, em S. Miguel com temperos com predominância do colorau, afinal também o pimentão) e com bom uso de ervas variadas. É claro que há adaptações provavelmente seculares à realidade local. Em relação à cozinha alentejana e do Alto Tejo, há na cozinha micaelense maior equilíbrio entre a carne de vaca e a de porco. As gorduras são principalmente a manteiga e a banha, em vez do azeite, produto só importado e usado com algum luxo, só, para temperar com azeite e vinagre peixe cozido e saladas.

É uma cozinha que difere da nossa cozinha continental do litoral, que claramente privilegia o peixe. A cozinha açoriana é muito uma cozinha de carne, e também de capoeira. É de estranhar em ilhas, perdidas entre tanto mar. Mas a costa alcantilada das ilhas vulcânicas não propicia bons portos de pesca. Apesar do excelente peixe que aí se pesca, muitas vezes sem comparação de qualidade com o disponível no continente (com destaque para o carapau, a garoupa, a abrótea, o rocaz, o cherne, o atum albacora ou a bicuda/barracuda, e também o marisco), o açoriano, particularmente o micaelense, esteve sempre mais voltado para a terra do que para o mar. Sobre essas quase duas culturas antagónicas, Armando Côrtes-Rodrigues, poeta micaelense de grande mérito e membro na juventude do grupo do Orfeu, escreveu uma notável peça de teatro, “Quando o mar galgou a terra”, de um enorme dramatismo telúrico, hoje injustamente esquecida.

Outro aspecto típico, em especial em S. Miguel e provavelmente relacionado com a navegação africana, com passagem obrigatória nos Açores na volta da Guiné, é o uso ubíquo da malagueta, ou pimenta da terra, com origens nas costas da Guiné e do Benim (a nossa pimenta em grão, preta ou branca, ainda é chamada pelos mais velhos como pimenta do reino, tal como também se diz ainda no Brasil). Uma outra especiaria essencial na cozinha micaelense, e também das outras ilhas, é a açaflor, a que o povo da minha ilha também chama açafroa. É o moído das flores secas do cártamo, planta diferente da usada na cozinha meridional espanhola.

A outra tónica da cozinha açoriana, comum a todas as ilhas, é o uso variado e imaginativo de especiarias. A pimenta preta, o cravinho, a pimenta da Jamaica, a canela, os cominhos, a noz moscada, a erva doce, entram na culinária açoriana a um grau muito maior do que no continente. Talvez isto tenha a ver com a rota das Índias. A passagem pelos Açores era obrigatória, na volta de largo no regresso. Será que os capitães das esquadras trocavam especiarias por produtos frescos das ilhas? Os historiadores que o digam.

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