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Quarta-feira, Março 27, 2024

Afinal, para que serve a ONU?

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

ONU

 

Esta semana António Guterres será eleito, pela Assembleia Geral, Secretário-Geral da ONU, depois de uma série de debates públicos que envolveu vários candidatos ao cargo. Foi consensual a preferência por ele, depois de se ter mostrado como o mais bem preparado e o mais adequado para o cargo.

Guterres está de parabéns, os portugueses (à excepção de Mário David) também e o PS pode legitimamente exibir orgulho por um dos seus ter chegado onde chegou. Também a Internacional Socialista, de que ele foi Presidente, teve ocasião de o felicitar publicamente, colhendo, assim, a oportunidade para reaparecer depois de tão longo afastamento da cena pública. Mas esse é outro assunto, a que voltarei.

Tratou-se de um processo inovador na escolha do Secretário-Geral pela transparência dos procedimentos adoptados. Por um lado, não foi uma escolha de bastidores e, por outro, pôs à prova as capacidades e competências dos candidatos, para além dos cargos que antes desempenharam. Veremos, mas a eleição pela Assembleia Geral (onde deverá obter pelo menos dois terços dos votos) seguirá certamente a recomendação, prevista estatutariamente, do Conselho de Segurança (integrado por 15 membros e onde não obteve sequer um voto contra ou de desencorajamento).

O facto de ter sido ACNUR durante dez anos ajudou-o certamente a preparar-se para este desafio crucial. Alguém que o conhece bem disse-me, quando foi escolhido como ACNUR, que a primeira coisa que ele faria logo que assumisse funções seria a de fixar o objectivo de se tornar Secretário-Geral. Na mouche! Conseguiu, demonstrando que é, não só, um homem de estratégia, mas também determinado e bom executor.

O que é a ONU e para que serve?

É a organização de autogoverno do mundo, composta por 193 países e que integra, no chamado “Sistema ONU”, as mais importantes organizações temáticas e sectoriais que operam à escala planetária (Organização Mundial do Comércio, Organização Internacional do Trabalho, UNESCO, FMI, Banco Mundial e as chamadas Uniões Administrativas e Técnicas: UPU, UTT, OMPI, OACI, OMSaúde, OMM, AIEnergia Atómica).

A estrutura interna da ONU é formada pela Assembleia Geral, pelo Conselho de Segurança, pelo Secretariado e pelo Secretário-Geral, tendo como órgãos de apoio o Conselho Económico-Social e o Conselho de Tutela e como órgão jurisdicional o Tribunal Internacional de Justiça.

Nasce em 1945 e começa a funcionar em 1946. Sucedeu à Sociedade das Nações, organização internacional nascida em Versalhes, em 1919, sob o impulso da agenda de Woodrow Wilson e dos seus famosos “fourteen points”, visando, no pós-Grande Guerra, preservar os princípios da paz e da autodeterminação dos povos. Tendo tido uma vida complicada (os EUA, grandes impulsionadores, acabariam por não vir a integrá-la) no período de ouro dos totalitarismos europeus, acabaria, no final da Guerra, por dar lugar à ONU, na Conferência de São Francisco.

Esta organização está marcada, na sua matriz, pela ideia de paz, como já estivera a SdN. E esta ideia representa a sua fonte principal de inspiração e o fio condutor da sua acção, sendo certo que ela se desenvolve também nas múltiplas frentes representadas pelo chamado “Sistema ONU”.

E o Secretário-Geral?

O Secretário-Geral é o mais alto funcionário da ONU, com funções administrativas, diplomáticas e políticas, tendo não só a faculdade de suscitar ao Conselho de Segurança questões relativas a situações de crise e de inscrever temas na agenda da Assembleia Geral, como a de desempenhar missões diplomáticas em nome de ambos. De resto, o Secretário-Geral, sendo o rosto da ONU, acaba por assumir um protagonismo que de algum modo transcende as suas próprias competências formais.

Guterres sucede, pois, a Trygve Lie (o primeiro, 1946), Dag Hammarskold, U Thant, Kurt Waldheim, Perez de Cuellar, Boutros Boutros-Ghali, Kofi Annan e Ban Ki-Moon. Desempenhará as suas funções durante cinco anos, podendo ser reconduzido uma vez.

É neste quadro que se moverá o português António Guterres. Ninguém em boa fé poderá deixar de reconhecer que é a ele, à sua determinação, que se deve inteiramente esta caminhada, quando o ambiente de fundo prévio à eleição parecia estar desenhado para uma mulher do leste europeu. Situação que, de resto, se manteve até ao fim, com a desastrada operação Georgieva.

Guterres desenhou e cumpriu um percurso que nenhum outro português conseguiu até ao momento. Até para Presidente da Comissão Europeia parece ter sido sondado, recusando, devido aos compromissos com o País. O lugar acabaria por vir a ser ocupado por Romano Prodi. Guterres foi Secretário-Geral do PS, Primeiro-Ministro, Presidente da Internacional Socialista, a maior organização política mundial, ACNUR e, agora, Secretário-Geral da ONU.

Outros Tempos

Lembro-me bem do tratamento que o nosso establishment mediático lhe deu quando ganhou as eleições legislativas, em 1999, tendo conseguido 115 deputados em 230. Caíram-lhe em cima, literalmente, construindo, de forma falaz e injusta, estereótipos demolidores: o derrotado, o indeciso, o ausente. Sem mais. Relativamente à ausência, tratou-se verdadeiramente de um ataque inacreditável. Portugal ia ter a Presidência da União Europeia e, naturalmente, teria de se deslocar às capitais da União para preparar o semestre. Mas fazia-o em curtas visitas, mantendo o ritmo da agenda em Portugal.

Sei-o de ciência certa, pois, na altura, eu tinha o meu Gabinete de trabalho na residência Oficial do PM e recebia todas as manhãs a agenda de Guterres. A injustiça desta crítica generalizada irritou-me a tal ponto que eu próprio acabaria por desenvolver uma investigação sobre estes media, concluindo pelo extremo e sistémico facciosismo dessas críticas. Está publicada no meu livro “Media e Poder” (Lisboa, Vega, 2012). Este ambiente – mais do que a relativa derrota nas autárquicas –, construído e alimentado, quase obsessivamente, a partir do dia seguinte às eleições, talvez tenha constituído a principal razão para a sua saída, em 2002.

A missão e o homem

O Secretário-Geral dispõe de uma boa margem de manobra para lidar com a situação política internacional naquilo que são as grandes questões da paz e da autodeterminação. O New York Times dedicou um Editorial a Guterres (“A New Voice for a Complicated World”, 05.10.16) e à sua missão e pôs em evidência, além da suas qualidades e experiência (“experience, energy and diplomatic finesse”), as principais questões que se lhe porão de imediato: guerras regionais, tensões entre a Rússia e o mundo ocidental, a posição da China na Ásia, a crise dos refugiados no Médio-Oriente e na Europa, a questão nuclear no Irão e na Coreia do Norte, o problema da fome com milhões de pessoas, o posicionamento da ONU num mundo onde terrorismo e guerra estão misturados e promovidos por múltiplas forças. Tudo isto, quando a própria ONU tem a sua credibilidade para as soluções de paz de algum modo afectada!

Ninguém tem dúvidas da natural vocação de Guterres para a mediação e para lidar com estes gravíssimos problemas, das suas capacidades diplomáticas e, sobretudo, da sua assumida mundividência de inspiração social e solidária. O caso de Guterres deveria fazer pensar as nossas elites: o seu desprendimento aliado a uma forte determinação, os seus valores conjugados com um pragmatismo de inspiração humanista, a sua inteligência posta ao serviço de uma grande sensibilidade ao universo do sofrimento e da dor.

Sabe-se que a ONU precisa de uma forte reestruturação e redefinição. E creio que, se para esta viragem for necessário um consistente esforço de mediação política e diplomática, ele será o homem certo.

Desejo-lhe os maiores sucessos neste gigantesco desafio a que irá ter de responder.

Nota do Director

As opiniões expressas nos artigos de Opinião apenas vinculam os respectivos autores e não reflectem necessariamente os pontos de vista da Redacção ou do Jornal.

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