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Quinta-feira, Março 28, 2024

“Agora que o hálito fétido de 64 nos bafeja a nuca…”

Beatriz Aquino
Beatriz Aquino
Formada em Publicidade e Propaganda. É escritora e atriz de teatro. Nascida no Brasil a viver em Portugal.

Faço minhas as palavras do Sr. Ariclenes. Do ser humano que ele é. Não apenas do Lima Duarte, o ator. Do Sinhôzinho Malta, do Sassá Mutema e de tantos, tantos outros. A alma brasileira apresentada por sua voz e gesto.

Faço minhas as palavras do Sr. Ariclenes. Do ser humano que ele é. Não apenas do Lima Duarte, o ator. Do Sinhôzinho Malta, do Sassá Mutema e de tantos, tantos outros. A alma brasileira apresentada por sua voz e gesto. Com você meu senhor, eu nunca tive tanto orgulho de ser tupiniquim, tanta alegria em ser Jeca. Nunca foi tão doce ser caipira, tão singelo e nobre ser simples e trabalhador.

Mas veja que hoje, o homem que falava com as rosas e borboletas não existe mais. Talvez ele ainda sobreviva em algum lugar dessa tua Minas Gerais. Refúgio de tantas almas sensíveis e de pássaros raros como você e como o Flávio. O Flávio… O querido Xerife. O senhor Chalita.

Sim. Esse homem nobre e singelo que vocês representaram tão bem ficou no esquecimento. Ele foi aos poucos virando personagem de telas bucólicas, daquelas que ficam por cima do velho sofá das avós e que são substituídas às pressas por suas netas modernas. O bom virou cafona, senhor Ariclenes. A moda agora é ser supérfluo e ralo. Telas impressionistas, cores berrantes, museus de vidro e aço. O mundo virou mesmo uma exposição grotesca. As violas da tua terra cantam um música distante que não alcança os decibéis da imensa balburdia. A turba se refastela em ignorância. Agora a moda é não saber nada, especular sobre tudo, inventar verdades, distorcer fatos, comprar eleições. Nunca um tirano foi tão amado. Antes amava-se o corrupto porque achavam que ele era um homem bom. Antes éramos apenas desavisados. Hoje amamos abertamente o déspota, o arrogante, o debochado. Rimos de suas piadas, lustramos suas armas, lambemos suas botas. Nunca se precisou tanto de violência como expressão íntima. Um homem que faz do gesto um cano de revólver e uma nação inteira o copia. O que dizer…

Sassá Mutema

Eu tento, senhor Ariclenes. E perdoe-me se o chamo assim com essa intimidade. É que pessoas como você acalentam um mundo inteiro. Quantas vezes não dormi no colo do querido Mutema ao som da música do Osvaldo Montenegro? Sim. Você é como o pai e avó de algumas boas gerações.

Mas eu dizia que tento, ao ver essa aglomeração de gente desinformada articulando discursos ditados, que tento imaginar que esse período é apenas um sono pesado após o almoço. Um pesadelo curto desses que o corpo impõe aos pensamentos e eles ficam todos encavalados e cruéis. Crianças repetindo o gesto do grande homem, senhoras afirmando que todos os bandidos devem ser mortos. Isso não é coisa real. Não somos isso. Não somos. Em breve acordaremos e poderemos voltar à lida e à dança como todos os personagens lindos que você interpretou.

Porque sabe, senhor Ariclenes, a barra tá pesada. As músicas de hoje são de chocar a mais vulgar das mulheres e arrepiar o mais cruel dos homens. As valsas e sanfonas foram trocadas por batidas violentas e os passos de dança que antes expressavam o estado de espírito humano, agora são mera cacofonia de um coito animalesco. E perdoem-me os animais, mas hoje em dia até eles possuem mais elegância que os homens.

Ruiu toda e qualquer possibilidade de diálogo, meu caro. Os dois polos não querem mais nada além de se digladiarem. É a guerra pela guerra. Voltamos às arenas. A política e seus banqueiros e também o interesse privado finalmente conseguiram o que queriam. Nos tiraram o ideal. Não há um mártir que compre essa briga. Não o que salvar. Uma luta sem armas. A mais perigosa de todas. Mais letal que esse vírus de origem duvidosa. Porque o desânimo, o deboche, o descaso se infiltrou nas fibras do cidadão brasileiro que sofreu um processo lento e silencioso de abdução. Explico:

Primeiro lhe amaciaram as carnes com um governo assistencialista. Bolsas e benefícios, acesso a bens materiais e centros acadêmicos. Mas a vera instrução, nada. A reflexão sobre nossa origem, nossa história e seus preconceitos, nada. Deram aos jovens uma ilusão de que podiam tudo. Computadores, carros, motocicletas, celulares de última geração. E os mesmos pés desinformados de antes pisando no mesmo lodo da ignorância.

Depois instalaram o caos, a desordem geral. Os caminhões pararam, não havia abastecimento, não havia comida. Protestos fechando as rodovias e na televisão, a Lava Jato esguichando diariamente o rio de corrupção que estava por baixo do nosso verde tapete. Eis o nosso pré sal. Rios de dinheiro desviados, políticos presos, empresários presos, banqueiros presos. E após minarem toda e qualquer esperança em cada um de nós, lá vem um homem de farda com o seu discurso de salvação. “Segurança.” “Mão de ferro.” “Armas em punho.”

Ah senhor Ariclenes… Somo tão facilmente guiados. Há poucos anos atrás éramos todos em prol dos direitos humanos. Parecíamos tão modernos e prósperos. Mas nossa convicção era tão fina e rala quanto as paredes da maquete da pseudo economia emergente e sólida. Da época que o homem sem dedo era considerado “o cara.” Pois é… Pouquíssimos anos depois, essas mesmas pessoas modernas e que defendiam o livre pensar posavam ao lado do grande homem imitando o seu patético gesto bélico. Jogos de vídeo game foram criados onde gays e negros eram abatidos como animais. Eu via aquilo tudo e achava se tratar de algum grupo separatista que conseguia se propagar pela internet dando a impressão de que eram muitos. Mas não. Eles eram muitos. Representavam e representam boa parte da população do país. E estão por toda parte. E isso é coisa assustadora de se constatar.

Então meu amigo, eu só posso pensar que tudo isso não passa de um grande pesadelo. Que daqui do velho mundo eu verei o despertar da nossa bravia nação. Dia onde todos iremos cantar novamente a bela música do Geraldo Vandré. É o que eu espero de verdade. Pois sou muito nova pra assistir tão grande e contundente declínio da minha terra.

Sim. O manto de escuridão do militarismo nos abraça mais uma vez. E para ilustrar o momento, corrompo as palavras do poeta Bessonov, personagem de Tolstói. Que se não entendia nada dos trópicos, muito sabia sobre opressão:

A neve está chegando. Rodopiando agitadamente sobre a terra fria. O mundo ficou ainda mais triste. Eu me recuso a acreditar que Deus não existe. Que minha oração, como um rio, leva uma sílaba semi sussurrada de vela em vela, na expectativa de algo maior.

E a morte vigia, cruel sem temer, prendendo a terra à sua escravidão.”

Tem razão Vandré. Esperar não é saber…


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