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Sábado, Dezembro 14, 2024

As várias dimensões da desinformação

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A Reuters é talvez a mais prestigiada agência de informação existente no Ocidente, o que para mim é um selo de qualidade relativo, habituado que estou a ler peças de desinformação onde e em temas em que eu pensava tal ser impossível, a começar pela heróica BBC da minha infância.A desinformação, sob forma de intriga, boato ou propaganda de guerra sempre existiu.

  1. A autoanálise necessária

Vêm-me à memória os almoços de infância em que frequentemente o prato era faneca, e a rádio interrompia o fado ou o futebol (três dos quatro F’s com que só depois de adulto deixei de embirrar, o quarto, era o de Fátima) para, creio, às 12H30, se ouvir ritualmente o noticiário da Emissora Nacional que começava com o apontamento “Rádio Moscovo não fala verdade!”

E tanto chegou para que a minha primeira obsessão de miúdo fosse a de ouvir a dita cuja “Rádio Moscovo”. O objectivo nunca foi alcançado, provavelmente porque as interferências eram demasiado fortes. Em contrapartida, na tentativa falhada, descobri a BBC em português, audível apesar das interferências; interferências que lhe davam um toque de 2001 Odisseia no Espaço. A BBC passou por isso a ser a minha informação de referência por muitos e longos anos.

E enfim, depois da procura da Rádio Moscovo acabei, já depois do 25 de Abril, por me convencer durante algum tempo que uma das maiores catástrofes humanitárias, sociais e políticas do século XX, a Revolução Cultural Chinesa, teria sido uma libertação da humanidade de dogmas escolásticos – a pior aldrabice, ou “fake news” de que alguém me convenceu na vida – e, depois, acreditei ainda em várias outras fantasias, trazidas pela paixão clubística-partidária ou de outro tipo de que não faço a lista para não cansar o leitor.

Tudo isto para dizer que estou vacinado contra vários tipos de aldrabice política; que tenho um razoável conhecimento do que se passa no mundo, ou por outras palavras, sou consciente dos limites colocados pela minha ignorância, mas que não descobri ainda a poção mágica de protecção contra toda a desinformação.

Posso no entanto aconselhar algumas medidas eficazes no combate à doença:

  1. Controlar o clubismo, partidarismo ou a paixão. Na verdade, o clube A não é necessariamente sempre melhor do que o clube B, e o partido B necessariamente melhor do que o partido A e a personalidade A que detestamos, tem frequentemente imensas e insuspeitas qualidades que sobrelevam as da personagem B que adoramos;
  2. Ler muito, tanto quanto possível em línguas, estilos e matérias diversas, aprendendo a separar o trigo do joio com precaução e paciência;
  3. Escutar muito, tanto quanto possível de forma discreta e aleatória, saindo de casulos, zonas verdes, ágoras clubísticas ou torres de marfim.
  4. Pensar, reflectir, fazer cenários, mas sem se deixar levar pela imaginação. Na dúvida, reservar a opinião.

 

  1. A descoberta da capacidade de desinformação iraniana pela Reuters

A Reuters é talvez a mais prestigiada agência de informação existente no Ocidente, o que para mim é um selo de qualidade relativo, habituado que estou a ler peças de desinformação onde e em temas em que eu pensava tal ser impossível, a começar pela heróica BBC da minha infância.

E enfim, quarenta anos após a revolução teocrática iraniana, a Reuters produziu um relatório sobre a máquina de desinformação iraniana. O relatório é consideravelmente mais denso e completo do que os que levaram há meses atrás os gigantes das redes sociais Google, Facebook e Twitter desmontar números consideráveis de páginas geridas pelos serviços secretos iranianos, e lista já 14 das línguas em que a campanha iraniana funciona e a sua ordem de prioridades onde, sem surpresas, a desinformação sobre o Iémen ocupa o lugar cimeiro.

Descobriu o relatório, nomeadamente, que um dos instrumentos iranianos de desinformação convenceu o Ministério da Defesa de Paquistão a fazer uma ameaça de guerra nuclear a Israel: “A news site called Another Western Dawn which says its focus is on “unspoken truth.” It fooled the Pakistani defence minister into issuing a nuclear threat against Israel.”

O relatório merece ser lido, embora nos dê apenas uma pálida imagem do que são as actividades iranianas de desinformação, sugere acertadamente que o mundo se tem entretido demasiadamente com a Rússia esquecendo-se do Irão.

Acima de tudo, o relatório peca por olhar para a difusão electrónica de desinformação como algo à parte das restantes técnicas e da estratégia que as superintende a todas.

A desinformação, sob forma de intriga, boato ou propaganda de guerra sempre existiu. Cito sempre a esse propósito a epidemia que matou mais gente na história da humanidade e que ficou conhecida até à actualidade por “gripe espanhola”, apenas porque a Espanha foi dos únicos países neutrais, que por isso não impôs a censura de guerra, o que permitiu que se falasse da epidemia em Espanha, apesar de esta nada ter a ver com a Espanha e ter provavelmente começado nas trincheiras da guerra.

Esta desinformação – que não foi completamente ultrapassada – leva-nos ainda hoje a subestimar as consequências do conflito mundial.

Segundo me explicou um amigo português perito em desinformação, o site “direita política” é algo de amador em que o autor resolveu servir um mercado (o dos descontentes com a geringonça) juntando tudo o que apanha que seja desfavorável à geringonça. O dono do site limita-se a viver do número de clicks suscitados (que lhe renderá uma soma de poucos milhares de euros mensais, imagino, livres de impostos).

A esmagadora maioria do que é publicado não é mentira, é apenas provavelmente enviesado, sendo que a história do relógio milionário suíço de uma dirigente do Bloco de Esquerda foi lá metida por descuido.

Provavelmente o autor não tem posição política, e se as circunstâncias do mercado o ditarem, é bem capaz de fazer o site “Esquerda a sério” para fazer o reverso do que tinha feito antes com o objectivo de maximizar as suas receitas.

  1. O caso iemenita

Com a “direita política” estamos no domínio do artesanato, enquanto a campanha que coloca milhares de portugueses a partilhar no Facebook notícias oriundas dos patrocinadores da guerra no Iémen, essa, é industrial.

A presente guerra do Iémen foi desencadeada por um grupo fanático islamista Ansar Allah, conhecido pelo nome de um dos seus antigos generais, o general Houthi. O “Ansar Allah” faz parte da constelação de filiais dos guardas revolucionários iranianos, normalmente designadas por “Hezbollah”.

“Ansar Allah” e “Hezbollah” querem fundamentalmente dizer o mesmo, no primeiro caso a expressão pode-se traduzir por “apoiantes” ou “partidários” de Deus e no segundo por partido de Deus.

Os guardas revolucionários iranianos superintendem esses grupos e usam por vezes diferentes nomes com objectivos de desinformação.

Acontece também que enquanto há grupos que são criados, financiados e armados exclusivamente pelos guardas revolucionários iranianos, há outros que têm apenas uma relação de oportunidade e não de exclusividade com eles, e esse é o caso da Al Qaeda ou do Hamas.

Na campanha de desinformação iemenita, a generalidade da informação é verdadeira, nomeadamente as terríveis condições em que vivem as populações aprisionadas pelo “Ansar Allah” ou pela “Al Qaeda”, mas o essencial da informação é totalmente distorcida, no sentido de apresentar os fautores da guerra como vítimas inocentes de potências invasoras.

 

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