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Quinta-feira, Outubro 10, 2024

Carnificina pós-soviética

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

As consequências da ausência de memória

A derrota russa na batalha de Kiev (tomamos aqui o nome da capital para designar a vasta zona do Nordeste ucraniano de onde o invasor foi obrigado a retirar) permitiu a múltiplos observadores internacionais visitar in loco os locais onde se desenvolveram os massacres de civis pelas forças de ocupação e difundir para todo o mundo imagens, testemunhos e relatórios sobre a carnificina.

Perante a insofismável evidência, sem nunca propor qualquer alternativa razoável, Putin e os seus acólitos, dentro e fora de fronteiras, limitaram-se a negar a evidência, juntando lateralmente os ínvios argumentos relativos que só servem para provar a sua má consciência.

Putin continua a ocupar uma importante parte do território ucraniano a Sul e a Sueste, sendo que tudo leva a crer que a cidade de Mariupol, onde continuam os combates, se vão encontrar evidências semelhantes ou mais impressionantes ainda de eliminação sistemática de civis e rapto de sobreviventes (mulheres e crianças) para solo russo num cenário que exige a investigação de um novo genocídio em território ucraniano.

As Nações Unidas deveriam ter enviado imediatamente um substancial, independente e competente corpo de peritos para verificar o crime no local, e não apenas constatar a sua necessidade, como António Guterres fez no seu discurso perante o Conselho de Segurança, discurso claro e frontal noutros domínios. Porque constatar a necessidade de investigar é algo que qualquer cidadão faz, o que se exige de quem tem algum poder executivo é que actue.

António Guterres saberá – porque conhece a história e porque é inteligente – que o futuro das Nações Unidas está em jogo, e se porventura alguém ousasse sabotar essa missão, ele nada mais teria a fazer do que expor a verdade perante o mundo.

Não é mais possível fazer consensos com quem usa e abusa dos consensos do passado para repetir os crimes que ficaram por escrutinar! A Sociedade das Nações que antecedeu as Nações Unidas, nunca deixou de existir formalmente; limitou-se a tornar-se irrelevante, porque não pode, não soube ou não quis intervir e parar repetidas violações ao direito internacional.

Um dos principais pilares das Nações Unidas, que ocuparam as velhas instalações da Sociedade das Nações em Genebra – contra a intenção de Roosevelt, que era a de cortar também com Genebra, instalando as Nações Unidas na cidade da Horta, nos Açores, mas essa intenção não sobreviveu à sua morte prematura – foi a Convenção Internacional sobre o Genocídio, a que me refiro em pormenor no contexto do tratamento do genocídio no Bangladesh.

No processo de decisão que levou à convenção que eu passo em revista, o facto mais saliente foi o de a União Soviética se ter oposto veementemente a que os motivos políticos constassem nas causas identificadas para a declaração de um genocídio.

Ou seja, o texto da convenção refere explicitamente a eliminação de grupos humanos definidos nacional, étnica, religiosa ou racialmente, mas a definição ‘política’ foi vetada pela União Soviética. Independentemente da vasta discussão jurídica sobre a questão, é a contemporização perante os crimes soviéticos que está em causa, e é o facto de estes nunca terem sido levados a tribunal que leva àquilo que se desenrola sob os nossos olhos.

O Holodomor – genocídio pela fome perpetrado pela União Soviética sob uma vasta área da Ucrânia de então (englobando territórios que estão hoje na Rússia e na Moldávia) – teve como objectivo eliminar uma população que continuava a resistir à integração forçada na URSS.

Entre o Holodomor e os dias de hoje pouco parece ter mudado. O putinismo é a continuação do estalinismo e dos seus crimes! Quem esquece a história é inevitavelmente forçado a repeti-la, bem conhecido aforismo atribuído entre outros a Churchill.

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