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Sexta-feira, Março 29, 2024

Celebrar a Noite de Cristal nos Emiratos

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Estou em crer que aquilo que estamos a ver nascer com os acordos de Abraão é um desafio sério a esta negra tendência intolerante e suprematista que é o jihadismo. Muito da paz no mundo vai depender do seu sucesso.

  1. Os acordos de Abraão para a paz

Com o apoio da ‘Iniciativa Abraâmica Global para a Paz’, o Museu do ‘Encontro de Civilizações’ do Dubai promoveu a celebração do segundo aniversário dos Acordos de Abraão – que tiveram nos Emiratos Árabes Unidos e em Israel os seus primeiros promotores – e dos 84 anos do pogrom de judeus na Alemanha Nazi conhecido como a ‘Noite de Cristal’.

Nessa noite, culminando uma vasta campanha de perseguição e assassínio de judeus foram incendidas e saqueadas centenas de sinagogas, residências e estabelecimentos judaicos, tendo começado então o internamento em massa de judeus em campos de concentração.

O dinamizador da iniciativa foi Edwin Shuker, judeu nascido em Bagdade, hoje cidadão britânico, incansável batalhador do combate ao antissemitismo do Médio Oriente e do restabelecimento da paz entre os povos que aí habitam.

Edwin Shuker

Edwin Shuker começou o seu discurso com as suas memórias de infância no Iraque, a perseguição, o ser obrigado a ver os seus familiares adultos enforcados em público e a fuga em 1969 apenas possível pela solidariedade curda, outra das minorias que o racismo neonazi perseguiu na região. A perseguição aos judeus no Iraque da década de sessenta foi em tudo semelhante à do Nazismo, não faltando sequer as estrelas amarelas que os judeus eram obrigados a usar.

O Nazismo não acabou com o suicídio de Hitler, e as perseguições, mesmo pogroms, contra os judeus continuaram em toda a Europa e prolongaram-se depois de 1948 no Médio Oriente, com perseguições generalizadas, como esta de que foram vítimas os judeus iraquianos. Tal como Hitler, o Ocidente fez da distorção da realidade do Médio Oriente um dos meios essenciais com que prosseguiu o seu antissemitismo.

Foi precisamente essa construção antissemítica que começou a ser demolida pelos Acordos de Abraão, e é por isso que esses acordos são tão importantes.

  1. Sessenta anos que mudaram o Golfo

Para entendermos um pouco do processo que levou a este corajoso passo por parte de um país árabe, convém talvez situar a realidade dos Emiratos Árabe Unidos.

Nos tempos modernos, a costa Sul do Golfo (pérsico para uns, arábico para outros, normalmente uso apenas o nome de Golfo para não ferir susceptibilidades) e do Golfo de Omã foi sucessivamente ocupada por portugueses, iranianos, turcos (parcialmente) e finalmente, sob a forma de protectorado, pelos britânicos.

Nos anos 1960, o Reino Unido assumiu a sua incapacidade para manter a protecção acordada e em 1971, todo o seu antigo domínio tornou-se independente. O sultanato de Omã prosseguiu uma modernização controlada, o Kuwait tornou-se um rico e conservador emirato, o Bahrain, evoluiu para uma pequena monarquia constitucional – a politicamente mais avançada do grupo – em contraste com o vizinho emirato do Qatar que, tornando-se o país mais rico do mundo graças às suas reservas de petróleo e sobretudo de gás, é também o único que permanece fiel ao credo fanático do wahabismo, promovendo o fanatismo islâmico em todo o mundo. Sete dos emiratos restantes resolveram formar uma união, os Emiratos Árabes Unidos, união dominada pelo maior do emiratos, o Abu Dhabi e pelo mais populoso e mais rico, o Dubai, que conseguiram conjugar uma estonteante modernização económica com uma importante liberalização política.

Uma deslocação pelo deserto, com as suas quintas de camelos, que era a base da economia e da sociedade há sessenta anos, serviu-me para fazer melhor uma ideia da imensa revolução observada no país, que se centra na fase de ouro dos hidrocarbonetos, que passa pela ostentação, mas que compreende também, nalguns casos, a abertura de novas pistas de desenvolvimento.

  1. A herança colonial islamista

O Islão tem uma história de imensa intensidade e diversidade, e basta apenas ler um bom compêndio para ter disso uma ideia. A tendência fundamentalista que marcou o Golfo durante mais tempo foi o Zaydismo, que dominou a maior parte da história do Islão no Iémen, até há meio século atrás.

A teocracia iraniana apostou na reinvenção deste regime islamista fanático no Iémen, criando e financiando uma milícia armada e coordenada pelos Guardas Revolucionários Islâmicos, o Ansar Allah, que devastou o país de que ocupa uma parte substancial e de onde tem lançado ataques aos países árabes do Golfo, incluindo os Emiratos Árabe Unidos.

A segunda tendência fundamentalista mais antiga é a do wahabismo, historicamente ligada à monarquia saudita e ao emirato do Qatar. Desde 1979, e igualmente por inspiração teocrática iraniana, têm existido sucessivas tentativas de depor a monarquia saudita e substituí-la por um regime mais fanático.

A monarquia saudita respondeu durante muito tempo tentando comprar o fanatismo islâmico do seu país, até se dar conta do falhanço da sua estratégia. No entanto, só com Mohammad Bin Salman – o actual príncipe regente – se fez um corte claro com o fanatismo islâmico, tendo-se o país dissociado do wahabismo, que é hoje doutrina oficial apenas no Qatar (e parcialmente no Afeganistão, dado que é o wahabismo, versão sul-asiática que inspira os talibã).

A terceira tendência mais antiga é conhecida hoje como a da ‘Irmandade Muçulmana’, nome que formalmente adquiriu no Egipto em 1928, e que tem como um dos braços mais importantes o Califado, nascida na Índia Britânica, de onde surgiu depois o Jamaat-e-Islami. O fundador deste movimento, Maulana Maududi, foi o autor em 1927 de ‘Jihad’, que é o mais importante texto fundador do jihadismo contemporâneo.

A quarta tendência, e a mais importante, é a iraniana, que desabrochou plenamente apenas em 1971 com a formulação plena do conceito de governo pelo clero da autoria do Ayatollah Khomeini. A dinastia Safávida iraniana fez do Xiismo a religião do Estado no século XVI. Foi no Irão que nasceu progressivamente a ideia de um poder político exercido pelo clero, e que passou, já no século XX, pela criação de uma hierarquia religiosa com vários graus hierárquicos, dominados por ‘ayatollah’ – termo que, com o significado contemporâneo, apenas foi criado no século XX.

O colonialismo britânico apoiou sistematicamente as tendências islamistas nos territórios que dominou – frequentemente as mais conservadoras e fanáticas – vistas como mais favoráveis ao domínio colonial, e essa visão foi largamente prolongada pelos EUA.

Estou em crer que aquilo que estamos a ver nascer com os acordos de Abraão é um desafio sério a esta negra tendência intolerante e suprematista que é o jihadismo. Muito da paz no mundo vai depender do seu sucesso.

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