Charlie Kaufman, o homem por detrás das ideias geniais de Queres Ser John Malkovich?, Inadaptado ou O Despertar da Mente, passou agora também para trás da câmara para animar aquele que é um dos melhores filmes estreados internacionalmente em 2015, Anomalisa. Diante da oportunidade, subitamente no Verão passado, de falar com o realizador e Duke Johnson, o TORNADO não enjeitou a oportunidade.
Kaufman vive um momento singular na sua vida. Percebe-se que sente a apreensão e a responsabilidade de ter dado à luz um projecto tão inclassificável como Anomalisa, um filme que tem vindo a ser louvado pela crítica internacional. Isto apesar de garantir que não as lê. Talvez por tudo isso, quando apertamos a mão a este homem barbudo de 56 anos e baixa estatura, não deixamos de sentir a expectativa, mas também a confiança por ter abraçado de novo a realização.
Não foi ele que ousou creditar, na co-autoria do guião de Inadaptado, o inexistente irmão gémeo Donald Kaufman, no filme em que ambos são interpretados por Nicolas Cage? O resultado criou a originalidade insólita de ver nomeado a um Óscar uma ‘personagem’ irremediavelmente à procura do tal sentido para a sua existência.
Foi, por isso, com alguma naturalidade que, após um relativo anonimato, fosse substituído pelos rasgados aplausos recolhidos a propósito dos seus guiões de originalidade ímpar como Queres Ser John Malkovich, Inadaptado, O Despertar da Mente ou Confissões de uma Mente Perigosa.
Oito anos depois de Sinedóque Nova Iorque, uma obra mal compreendida, mas igualmente tocada pelo génio, Anomalisa como que sintetiza de forma arrepiante as várias ideias de Kaufman numa genial animação em stop motion, usando bonecos de palmo e meio que dão vida à peça de teatro que Charlie escreveu e encenou há, precisamente, 10 anos e que, basicamente, tinha dois actores a ler um diante do outro. De certa forma, parte de Charlie Kaufman vive neste Michael Stone, um guru do universo da auto-ajuda, que se move num mundo realista mas onde, a certa altura, se apercebe que, afinal de contas, todos têm o mesmo rosto e a mesma voz. Isto até descobrir uma mulher banal com cara e vozes distintas.
Foi este o ponto de partida para um inovador projecto financiado a partir de 400 mil dólares iniciais, gerados por ‘crowdfunding’, através da companhia Kickstarter, mas que se arrisca a gerar muitos milhões, agora que tem a atenção das nomeações aos Óscares de Hollywood, na categoria de animação. Por outro lado, sendo Anomalisa um filme que se destaca pela descoberta da singularidade, não é que Kaufman integra também aí a singularidade da língua portuguesa? De resto, na nossa entrevista, o autor apressou-se a confirmar o elogio – adoro o português -, ainda que se confesse à vontade no sotaque brasileiro.
Anomalisa foi um projecto que demorou dez anos a concretizar. O que mudou ao longo desse período?
Charlie Kaufman – Já nem me lembro como era há dez anos atrás… (risos) Mas acho que não há nada nesta peça que eu não reconheça.
Sente que realizar algo que escreveu lhe dá um grau mais elevado de controlo?
CK – De certa firma sim. Mas devo acrescentar que as minhas colaborações com o Spike Jonze (Queres Ser John Malkovich) ou o Michen Gondry (Inadaptado) foram muito reais. Respeito o trabalho deles, como eles respeitam o meu. Foi um trabalho de grande colaboração. Mas, claro que me dá mais controlo. No entanto, é algo que eu gosto.
Ainda assim, percebe-se que a escrita é o seu meio…
CK – Sim, claro. Mas escrever é muito difícil, um trabalho solitário que requer muita auto-disciplina. Eu gosto de realizar e trabalhar com actores. Sou uma pessoa visual, gosto do aspecto social das coisas. De certa forma é uma alteração interessante. Há o controlo e há o processo.
Porque decidiu fazer este filme em animação e não em imagem real?
CK – Tudo partiu daquilo que chamamos um ‘audio play’ (uma peça em áudio), em que os actores estavam em palco a ler os seus guiões – a ideia era que tudo fosse criado na cabeça do público, na sua imaginação. Há coisas neste guião que são muito ambíguas.
Pareceu-lhe que este processo funcionaria melhor como animação stop motion?
CK – Não, pensei nele como um processo visual. Mas quando eu e o Duke começámos a trabalhar percebemos que esta era a melhor forma de trabalho. Acaba por lhe dar um tom onírico e surreal ao vermos os bonecos. Isso acaba por servir a história.
Quer dizer então que o Duke Johnson entrou na parte mais técnica da animação?
CK – No fundo, a ideia partiu dele. Ele veio ter comigo e disse que queria fazer o filme como uma animação. Inicialmente, fiquei reticente porque já existia num formato que me agradava. Mas acabei por dizer: “se conseguirem o dinheiro podem fazê-lo”. E à medida que o projecto avançou ficou claro que era a melhor forma, apesar de não ter sido assim que foi concebido originalmente.
Até que ponto foi um desafio dirigir bonecos? Até que ponto havia uma divisão de tarefas entre o Charlie e o Duke?
CK – O Duke tem muita experiência em animação, por isso, foi o meu guia. Aprendi muito a trabalhar com ele. Tivemos muitas discussões, mas é claro que ele tem todo o lado prático implementado. Foi mais o lado conceptual que me fascinou.
Duke Johnson – O lado único desta colaboração vem do lado mais prático que eu tenho na animação stop motion e do conselho técnico que eu poderia dar.
Pode dar-nos um exemplo?
DJ – Por exemplo, quando se fazem vozes para stop motion, os actores gravam as vozes individualmente, tentando chegar ao som áudio mais limpo. Aqui não fizemos isso. Colocámos os actores todos juntos na sala e animámos tudo, mesmo com as respirações no meio ou eventuais sobreposições de fala.
Achei curiosa a ideia de desenvolver a ideia através de uma empresa de crowdfunding. Como foi que tudo se concretizou?
CK – O filme nunca poderia ter sido feito de um modo convencional. Nunca teríamos arranjado financiamento. O que conseguimos foi o dinheiro inicial através da empresa Kickstart e atenção suficiente para financiar o resto do filme e expandir.
Gastaram muito dinheiro para arranjar as impressoras 3D?
DJ – No fundo, acabámos por fazer um leasing com as impressoras. Foi um processo de financiamento complicado como sucede para fazer um filme em imagem real. É sempre muito complexo. Tínhamos de ter um escultor para fazer os moldar para o scan 3D.
Acha que este processo poderá revolucionar a animação?
DJ – Acho que fizemos algo que nunca havia sido feito. Não pensamos em como iríamos fazer algo revolucionário. Não era essa a nossa intenção específica. Apenas queríamos ser autênticos nesta história.
Quanto tempo demorou a produção?
CK – Demorou, ao todo, três anos, já com a pós-produção. Mas como não tínhamos mais nada para fazer… (risos) Mas foi um período muito complicado, em que algumas pessoas ficaram bastante frustradas e até pouco motivadas, pois não sabíamos se algum dia este projecto estaria concluído. Ficámos sem dinheiro mais de uma vez. Foi um pesadelo.
DJ – Foi uma guerra épica que travámos durante vários anos. Quando fazemos um filme em imagem real, temos um plano de como queremos fazer e fazêmo-lo. Neste caso, é um processo em evolução, em que nós próprios mudamos e a nossa perspectiva muda e evolui. Nesse sentido é um processo único.
O Michael e a Lisa, as personagens do filme, são baseados em pessoas reais. Fizeram algum tipo de casting?
DJ – O Michael é o meu ex-cunhado, e a Lisa é uma mulher que descobrimos num restaurante. Claro que fizemos primeiro as vozes. Depois quisemos encontrar representações visuais destas pessoas.
CK – Não queríamos que se parecessem com os actores que as iriam interpretar.
DJ – Queríamos que fossem específicas, mas ao mesmo tempo banais.
Não quiseram, portanto, que se parecessem com o David Thewlis e a Jennifer Jason Leigh?
CK – Acho que isso pareceria uma piscadela de olho e iria tirar-nos fora da história. Isso vê-se muito em filmes onde a fisicalidade do actor é transposta para a personagem.
DJ – A possibilidade de usar este meio permitiu-nos sair um pouco desse âmbito e ter esta experiência única com a voz que até podemos reconhecer mas com um corpo distinto.
Estamos a falar de vozes, mas tenho curiosidade acerca dos movimentos. Houve algum tipo de ensaios para chegar aos movimentos animados?
DJ – Sim, gravamos os movimentos visuais dos actores. Como se movimentaram naturalmente durante a gravação da voz. Mas também nos gravámos a nós próprios a fazer esses movimentos, bem como a outras pessoas a executar outros movimentos. Por exemplo, quando alguém puxa o cobertor de uma cama, temos de perceber como são executados esses movimentos, como o corpo se dobra. É uma combinação do movimento humano, representação. Depois temos também diferenças nos animadores, uns são muitos meticulosos, outros mais ligados à representação dos movimentos. Existe também um casting de animadores para diferentes aspectos.
Temos de falar, obrigatoriamente, da cena de sexo do filme. Desde logo por ser muito realista, mesmo em imagem real. Como foi que abordou essa cena?
CK – Não queríamos que fosse um gag, isso posso dizer. Não quisemos que fosse como o ‘Team America’… (risos) Queríamos que fosse uma expressão do que são estas personagens umas com as outras. Só essa cena demorou seis meses a filmar. Foi tudo executado de uma forma muito cautelosa.
Como é que essa cena de sexo era abordada na peça, sem imagens?
CK – Como disse, na peça existiam apenas actores que liam em palco. O David e a Jennifer estavam frente a frente num palco a fazer gemidos. Era divertido. O público via apenas dois actores a gemer, mas bem separados um do outro. Por isso aqui tínhamos de ser específicos.
Tinham um limite acerca do que podiam ou não mostrar? Isto para evitar uma classificação indesejada?
CK – Nós tínhamos uma erecção opcional… Mas a verdade e que não queríamos uma classificação de NC17. Queríamos ser realistas o mais possível. Não queríamos o valor choque, mas que fizesse o sentido que desejávamos. Mas com a tal opção que não chegámos a usar. Bom, se calhar já disse demasiado…. (risos) Acho que percebemos que tínhamos de ter um R, até porque queríamos um público específico.
Disse numa entrevista que a vida é a sua inspiração. Gostava de saber como é a sua vida a lidar com essa inspiração diária?
CK – Não tenho muita inspiração. Trabalho muito para me inspirar.
Traça um método de trabalho?
CK – Quando se trabalha de forma independente não há horário, há sempre tempo de trabalho. Quando estou a desenvolver uma ideia trabalho, por vezes, anos sem parar.
Enquanto realizador, diz que não gosta de se explicar. Mas um realizador acaba por se explicar mais do que um argumentista. Por exemplo, acho que não dava tantas entrevistas quando era apenas argumentista…
CK – Não, fiz muitas entrevistas. E tenho dito sempre a mesma coisa. E por dois motivos: damos alguma coisa ao mundo e queremos que o público responda. Quando fazemos um filme não damos uma explicação. Fazemos o filme e queremos que as pessoas tenham as suas reacções. Eu gosto que as pessoas possam interagir com aquilo que faço. Se eu fizesse algo que se auto explica ou tivesse de explicar o significado que tem para mim, tornar-se-ia em auto autoritário e definitivo enquanto sensação. No fundo, ou funciona ou não funciona como um todo. A minha explicação não funcionará se a experiência em contar essa história não funcionar.
DJ – Um dos aspectos fascinantes de trabalhar com animação stop motion é podermos analisar todos estes elementos e interacções humanas de uma perspectiva diferente e dar-lhes uma atenção que de outra forma não seria possível.
Qual foi o maior desafio de animar os bonecos?
CK – Foi um grande desafio para os animadores, porque não é isso que fazem. Normalmente, existe um movimento mais teatral enquanto aqui são detalhes de expressão muito subtis. E quando percebemos o tamanho dos bonecos (o maior não ultrapassa um pé), o que significa que os dedos, ou os olhos, são mínimos, mas que têm de ser movidos constantemente com um alfinete. É algo muito doloroso.
DJ – Para o piscar de olhos apenas tínhamos a opção de olhos abertos ou fechados. Então para piscar o olho teríamos de ter o olho fechado, abri-lo devagar e regressar à posição inicial. Pouco a pouco. Cada frame é como fazer uma escultura.
É frequente as personagens nos seus filmes perceberem, a certa altura, que estão num filme, romance ou peça. O mesmo se passa com o Michael, em que tudo o que o rodeia não é natural… Esse lado de lá da realidade é algo que o fascina?
CK – É claro que, quando estou a escrever, há coisas que me atraem e coisas que me permitem explorar outras coisas. Mas não quero ter aquele meta-aspecto. Mas não é a minha intenção. Quando estou a escrever saio um pouco do meu lado natural, porque gosto de o fazer, acho divertido e gostaria de o ver num filme. Por isso, faço isso, o que pode gerar um lado persistente na minha personalidade. Mas não é a minha intenção.
A ideia de colocar neste filme todas as pessoas falar com a mesma voz e apenas uma que se distingue é uma ideia brilhante. Mas, devo dizer que, fiquei ainda mais satisfeito ao colocar essa ideia na América do Sul, destacando o português como a língua que se fala apenas num país. É simpático.
CK – Isto porque adoro o português. É uma língua muito bonita. Apesar de falar melhor o português do Brasil.