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João de Sousa

Domingo, Dezembro 1, 2024

Concentração

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Campo concentração Calais menino polícia

Não precisas de palavras. Mesmo que quisesses não terias tempo para aprender todas as línguas.

Ali adiante está uma grade. É enorme e branca. Por cima, como se estivesses na Alemanha dos anos 40 ou num desses locais da Polónia (que os alemães fizeram de todos, embora o mundo sofra lapsos graves de memória), há rolos de arame farpado.

Sempre que há arame farpado há medo.

Aqui há muito medo. O cheiro deve vir daí, do medo.

Há guardas com armas pesadas que, cheios desse medo, andam de lá para cá. Deixam-nos aproximar. Só até à rede branca e forte que separa seres humanos.

Não precisas de palavras. Falas com as mãos e sobretudo com os olhos.

O cheiro é muito intenso.

A tua cultura urbana, burguesa e recatada oferece-te um vómito que travas na garganta, mesmo na altura certa.

Há olhos que te observam, do lado de dentro do recinto. Vais identificando os cheiros e não queres saber.

São os verdadeiros cheiros das crianças, das mulheres e dos homens quando deixam a vida pelo caminho.

Perguntas, a um dos que te levaram ali, pelas condições sanitárias, queres saber da higiene mas também da comida e dos alimentos, do que se passa do outro lado da grade branca. As respostas são evasivas. Nada é o que se deseja.

Podemos entrar?

É muito perigoso, diz um dos que vai contigo. E não precisas de palavras.

Dentro da cabeça o que te martela é a sensação de injustiça e tens uma vontade estranha de chorar como naquela tarde em que visitaste Birkenau e já não havia nada para ver a não ser um museu de horrores e uma memória que também era tua.

Estendem-te dedos por entre as grades. Tocas e não sabes o que fazes.

O guarda mais próximo puxa-te o braço e vais a ver,  o que ele faz é  empurrar-te com uma espécie de madeira encerada que afinal é a coronha de uma espingarda cara, acabada de fazer e distribuir pelas sentinelas.

Não precisas de palavras. Eles estão ali para cumprir uma missão e do outro lado creem ter circunscrito um punhado de animais doentes ou ferozes de uma raça aparentemente nova a que chamam refugiados.

Nem percebes porquê mas na tua cabeça toca uma música que ainda há pouco partilhaste com pessoas livres, Spiegel im Spiegel, Espelho no espelho, e apostarias que aquele rosto de olhos cavos é o teu próprio rosto e os que te rodeiam chamam-te, aqui não podemos fazer nada.

Já te habituaste ao cheiro. As tuas botas de luxo estão irreconhecíveis e do outro lado da grade há pés descalços e feridos.

Não tens pena das crianças só porque são crianças, nem das mulheres só porque são mulheres, ou dos homens que andam aos pares como se isso os ajudasse a serem homens, ou a resistirem em coro nas vozes que já não protestam. Não tens pena deles porque se o fizesses terias pena de ti. E isso é a última coisa que queres, ter pena de ti.

Acolá, há uma grande mancha de água. Como choveu parece que um lado tudo encolheu e se retirou para os pontos mais altos; a mancha torna o recinto ainda mais exíguo.

É a pátria deles, por alguns meses, diz uma senhora que se aproximou de nós e que nos estende a mão de unhas bem pintadas e palma macia, distribuindo depois sorrisos e uma atitude altiva. Temos mobilizado todos os esforços, diz ela.

Não precisas de palavras para teres a certeza de que não, não foram mobilizados todos os esforços, e que afinal aquilo é apenas a repetição de outros cenários da História.

Vês agora que na parte de cima do campo, junto à rede, logo no ponto em que parece mais frágil, mais baixa, mais transponível, estão uns guardas com capacetes e viseiras, escudos de vinil e grandes bastões. Não percebes se há alguma tensão eminente, se é pura rotina, mas como todos os animais que detetam o perigo também tu sentes o coração a acelerar e o sangue mais espesso a correr como um cão pontapeado.

Notas que, quem pode, usa casacos com capuz e que quase todos andam encapuzados, com um pedaço de rosto à mostra e o ar de quem não sabe o que virá a seguir.

Campo concentraçao / Refugiados - Calais

Outros têm sobre a cabeça e os ombros sacos de plástico. Protegem-nos da chuva e mantêm o calor do corpo, diz alguém ao pé de nós. Nada que chegue ao calor produzido pelo papel. O papel de jornal isola-os, diz outro alguém e o absurdo ganha uma dimensão de coisa fétida, como os pássaros que morrem e apodrecem no ar, ou coisa ainda mais insensível.

Vejo que num dos pontos do campo grupos entusiasmados rodeiam uma grande panela. Fazem pão, diz-me um. Mandamos farinha e água e sal. Fazem pão. Como o cozem? Mas ninguém me responde.

A senhora de mãos bem tratadas declara que nos primeiros dias havia muita pancadaria por causa das rações. Diz rações como se fosse uma palavra digna.

Fazemos triagens, para tentar saber quem tem documentos, para apurar do seu estado de saúde, promovemos vacinações. Já passaram por pior, diz um sujeito aprumado, como se soubesse do que fala.

Tu moves-te devagar, assim o fazem certos pontos de luz que lá longe fazem adivinhar vidas opostas.

Uma panela, uma colher, uma fogueira, um bocado de cobertor. São os mais ricos, do lado de dentro da rede. Mais de metade são homens. Vieram da guerra – pelos relatórios, são oriundos da Síria, do Iraque, do Afeganistão, mas também da Etiópia e do Sudão. Não choram, não rezam, não acreditam. Não têm ideologias, que isso é coisa de burguês acomodado. Não são violentos como tu quando estás aos gritos no trânsito da cidade, com o parceiro da frente que não arrancou com o sinal verde. Não são agressivos como tu quando queres um lugar na empresa. São os que herdaram o lado mais errado do mundo. Enterraram os que lhes eram mais queridos e para quem a sorte foi mais imediata.

Refugiados de Calais / Polícia

Do lado de lá da grade alguém incendeia uma coisa qualquer, parece um cobertor, e lança-o por cima do arame farpado. Outros atiram pedras aos guardas armados. Sem qualquer objetivo, pois há uma rede a separá-los, estes respondem com balas que, dizem-me, são de borracha, dissuasoras. Não se sabe ao certo o que há para dissuadir. Depois tudo volta ao normal, com o aspeto calmo do mar antes das grandes tempestades. Um silêncio mórbido ocupa o cair da noite. Se estiver aqui alguém realmente vivo que se aproxime.

Perseguem sonhos – e não sabem sonhar. Acham que destinos como a Inglaterra, a Alemanha e os países nórdicos são paradisíacos. Ricos e de futuro.

Não sabemos em quem confiar, diz-me um dos que estão deste lado.

Alguns deles, enquanto fugiam, queimaram locais das terras que os acolhiam, manifestaram-se de uma forma radical, violenta, extremista.

Não precisas de palavras. Não sabes o que farias se estivesses no seu lugar.

Ouves um tiro. Só um. Que não te parece levar na ponta do cano uma bala de borracha.

Começa a chover. A chuva limpa-te as botas e dissipa os cheiros.

Vês um velho a fumar.

Apanham restos de papel e folhas que secam e é assim que inventam cigarros, explica-me alguém.

Não sei se quero estar aqui. Porque aqui é um tremendo não lugar.

Um destes campos ardeu durante 22 horas seguidas, na sequência de uma revolta de desesperados.

Mas não serão todos desesperados.

E nós? Que desespero nos move?

Depois, muitos foram realojados, mas desapareceram mais de 3 mil. Andam pela Europa, perdeu-se-lhe o rasto. Prenderam alguns depois disso. Isto informa um rapaz com a cara cheia de borbulhas e sorriso a condizer.

Não digo que sim nem que não, a minha cabeça limita-se a receber a chuva com uma tranquilidade inexplicável.

Piso uma coisa que estala. No meio da lama está, agora partido, o que já foi um pente. Preto e branco. Desde miúdo que não via um pente como aquele. Lá ao fundo, há filas de tendas, dessas de recurso que a proteção civil mobiliza para as catástrofes. Nas imediações, do lado de cá, equipas de bombeiros, em grandes carros com equipamento para todas as emergências, esperam como predadores ou anjos de histórias velhas.  Dentro do campo, passa um rapaz a correr, sem saber para onde ir.

Havia aqui muita imprensa quando montámos isto, diz um homem muito alto que parece conformado, de consciência tranquila e sem saudades da imprensa.

Não tens palavras, pelo menos as necessárias. Se tivesses dirias que estar vivo tornou-se uma utopia. A última.

Este artigo respeita o AO90

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