Os tempos difíceis que agora vivemos irão marcar o fim do capitalismo-financeiro e a sua substituição por uma nova etapa no desenvolvimento humano?
As grandes convulsões sociais, económicas e políticas são invariavelmente apontadas entre as causas para os grandes saltos civilizacionais da espécie humana e entre estas também se contaram grandes epidemias, como a Peste Negra que grassou pela Europa em meados do século XIV e que, segundo alguns investigadores e autores, terá estado na origem do movimento cultural que marcou a transição do feudalismo para o capitalismo e que ficou conhecido como Renascimento.
Quer isto dizer que os tempos difíceis que agora vivemos irão marcar o fim do capitalismo-financeiro e a sua substituição por uma nova etapa no desenvolvimento humano?
Duvido muito! Todos os sinais que nos chegam, quer internamente quer da UE, apontam muito mais no sentido de uma continuidade que no de uma ruptura. Se não, vejamos: os 500 mil milhões de euros anunciados pelo eixo Paris-Berlim, que ainda aguardam aprovação mas já mereceram a oposição de alguns dos estados-membros pelo simples facto de preverem a sua mutualização e a atribuição de ajudas a fundo perdido, apresentam claros sinais de uma solução gizada na mesma linha de continuidade que quase poderia ser definida como o “business as usual”. Aplicadas da forma como desenhadas e apresentadas acabarão por se transformar num novo processo de acumulação de ganhos para o sector financeiro, por via da emissão de mais e mais dívida.
Aquele valor anunciado representa cerca de 3,6% do PIB da UE no último ano, desconhece-se como foi calculado (mas não deverá ser estranho ao facto da Alemanha ter anunciado o plano com idêntica percentagem para o relançamento da sua economia) e foi proposto quase em simultâneo com o anúncio pelo FMI que o PIB europeu pode cair 15%. Embora ciente que a dimensão do estímulo não tem que ser igual ao da contracção da economia, tenho fundadas dúvidas que o seu efeito multiplicador atinja uma dimensão suficiente para uma recessão da dimensão da esperada. Isso mesmo é confirmado quando surgem anúncios de planos internos por parte de alguns estados que só podem ser entendidos como medidas adicionais ao proposto esforço europeu.
Mesmo neste capítulo algumas das medidas propostas confirmam a ideia da continuidade, como seja o caso do Programa de Estabilização Económica e Social português que prevê suportar custos com o licenciamento de sistemas operativos e aplicações para a área do ensino quando é sobejamente conhecida a existência de soluções gratuitas na área do software livre, ou o caso alemão que já aprovou estímulo de 2,2 mil milhões para compra de carros eléctricos sem o anúncio de qualquer medida que leve à redução do preço das viaturas por via da imposição do aumento da sua vida útil (em lugar das actualizações que a um ritmo quase anual contribuem para uma mais rápida obsolescência e desvalorização dos modelos e a imposição de períodos mais alargados para a produção de sobressalentes) ou da uniformização de componentes como as baterias.
Outro aspecto pouco animador do nosso PEES é a persistente ausência de qualquer desagravamento fiscal, mesmo temporário (quando até o plano alemão prevê uma descida dos escalões do IVA de 19% para 16% e de 7% para 5%, até ao final do ano), que além da redução de impostos sobre o trabalho e o consumo também consiga uma redução dos impostos sobre o capital, acautelada que seja a necessidade de manter o nível de receita fiscal por via de uma actuação fiscal mais assertiva, especialmente sobre as mais-valias financeiras.
Tanto mais que a mera proposta de aplicação de um imposto adicional sobre a actividade bancária – que o governo chama de adicional de solidariedade, espera que renda uns parcos 33 milhões de euros e justifica pelo sector beneficiar de isenção de IVA sobre as operações bancárias – destinado a reforçar o financiamento da Segurança Social foi prontamente criticado pelo presidente da APB (Associação Portuguesa de Bancos) que explicou, sem qualquer rebuço nem pudor, que a banca “não compreende as razões” da contribuição de solidariedade tanto mais que será um dos sectores mais importantes para a retoma – esquecendo as críticas deixadas pelas associações empresariais que asseguram que os apoios não estão a chegar às pequenas e microempresas – e um dos mais afectados pela conjuntura…
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