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Segunda-feira, Março 18, 2024

Fome de outro mundo

Valdete Souto Severo
Valdete Souto Severo
Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora

Uma em cada três pessoas no Brasil não têm acesso à comida suficiente para alimentar a família, diz o Datafolha. As esquinas, praças e pontes confirmam. Muitas famílias estão morando nas ruas. Nas cidades maiores, é difícil encontrar uma grande lixeira, que não tenha por perto um ser humano faminto, em busca de restos de comida.

Isso é trágico. Insuportável.

Mas suportamos. E seguimos. Vivemos, inundados de notícias e avaliações sobre o que será o 11 de agosto; o 7 de setembro; o 2 de outubro. Vivemos com medo do que ainda precisaremos enfrentar, sob a lógica de um discurso oficial que estimula o armamento, a fúria contra quem pensa diferente, a distribuição direcionada de recursos.

A fome, em um país que produz pelo menos 18% da carne vendida no mundo, é política pública. Não há outra forma de compreendê-la. Basta saber que até a terceira semana de maio deste ano, o Brasil exportou 720 mil toneladas de carne bovina. Há carne, ela apenas não está acessível às famílias brasileiras. Segundo a CONAB, a produção de grãos no país deverá atingir 272,5 milhões de toneladas no ciclo 2021/22. O crescimento é de 6,7% em relação à temporada passada (cerca de 17 milhões de toneladas). Há comida, mas não para as famílias brasileiras.

Também há dinheiro em circulação. Em maio deste ano, a Petrobras distribuiu cerca de R$ 48,5 bilhões de lucro aos seus acionistas, registrando um aumento nesse lucro, entre 2020 e 2021, de mais de 1000%. Tantos outros exemplos temos, todos os dias, acerca das escolhas que colocam famílias na penúria, enquanto permitem o luxo de poucos.

Há alguns dias, foi notícia a ligação de uma criança de 11 anos para a polícia. Era a denúncia de um crime, em sua forma mais explícita e cruel. A criança tinha fome e não havia alimento em casa para ela e seus irmãos. Um crime com responsáveis. A prova irrefutável de que há diferença entre gestões públicas que permitem viver ou que atuam concretamente para levar à morte. Pois viver, em um país capitalista, depende inclusive de trabalho seguro e adequadamente remunerado.

A destruição da agricultura familiar e da indústria nacional, assim como o achatamento dos salários e a adoção de medidas que autorizam e estimulam trabalho precário e desemprego nos conduziram de volta a um tempo em que a fome já era companheira no café da manhã. Como disse em entrevista uma mulher negra trabalhadora, perguntada sobre o aumento de preço dos alimentos: “o desafio de sobreviver começa no café da manhã, pois não consigo mais comprar leite para meus filhos”.

Não se trata sequer de novidade na gestão pública de um país atravessado pela lógica extrativista e predatória, para a qual pessoas que vivem do trabalho são ainda e sempre tratadas como escravizadas.

A novidade é o despudor com que a aposta na opressão se coloca. A novidade não é a guerra “entre o feliz poeta e o esfomeado”, como diz a música do Paralamas. É o feliz poeta celebrando a sorte do esfomeado, virando-lhe as costas, apostando, uma vez mais, no mesmo discurso que aprofundou essa realidade perversa.

Nenhuma política que mantém um sistema perverso, como o que permite e naturaliza riqueza e miséria, nos serve. Se queremos viver outra realidade, uma na qual ninguém sinta fome, porque os alimentos serão distribuídos e não vendidos, é preciso mudar bem mais do que os corpos que transitam nos espaços de poder. Apesar disso, certamente hoje nada é mais urgente do que essa mudança.

Venho escrevendo neste espaço há algum tempo. Sobre misoginia, racismo, sobre violência consentida e incentivada. Sobre o desmanche dos direitos sociais. Sobre a fúria contra o trabalho regulado. Sobre omissão e sobre as atitudes de diferentes setores da sociedade, que de forma proposital ou não, reforçam práticas autoritárias e excludentes. As medidas e decisões que suprimem direitos em plena crise econômica e sanitária são partes de um mesmo discurso. Contribuem para o quadro de miséria deliberadamente produzida.

Apesar de tudo, a impressão que se tem, dependendo do grupo em que se esteja, dos veículos de comunicação a que se acesse, é que tudo está bem. Cada texto ou reportagem tratando da realidade cotidiana como se não estivéssemos vivendo o caos, assusta. A impressão é de que muita gente ainda não entendeu o que está em jogo. Nem a ligação de uma criança de 11 anos denunciando o crime de impor a fome, parece comover.

O que nos falta então?

Talvez perceber que dividimos todos o mesmo espaço e tempo. E entender que não há racionalidade que justifique a fome. Que uma só pessoa não tenha alimentos para sobreviver com qualidade e decência é já inaceitável. No Brasil, essa é a realidade de pelo menos 70 milhões de pessoas.

Permitir que a fome exista nos torna responsáveis. Não de forma individual, mas coletivamente. Precisamos urgentemente de outras escolhas. Precisamos apostar em outra sociabilidade, em outro modo de produzir e distribuir o necessário para viver. E ainda que esse movimento comece com pequenas atitudes, só se efetiva com a consciência de que é preciso alterar profundamente a estrutura social.

Se, apesar de tanta ciência, de tanta tecnologia, de tanta “eficiência”, ainda se impõe a crua realidade da fome, é porque não deu certo. O que fizemos até aqui não foi suficiente sequer para superar o ranço escravista que está na base da naturalização do absurdo da fome. Sim, pois é a ideia de que existem diferentes tipos de seres humanos, alguns dos quais podem suportar a miséria, para que outros vivam com conforto e tranquilidade, o que permite admitir sem drama tanta crueldade.

Superar isso depende de outra educação, que problematize, desde o início, a razão pela qual escolhemos tornar o trabalho obrigatório e o que isso significa. Depende da reconstrução dos laços sociais, a partir de uma ideia outra, que enfrente o significado político do uso que hoje se faz da raça e da sexualidade como instrumentos de dominação e violência. E, claro, implica uma alteração radical do modo como nos relacionamos com todos os seres vivos. Parece distante, mas é algo quase óbvio. Se extraímos da natureza o que precisamos para viver, respeitá-la, conviver com o ambiente reconhecendo seus limites, compreendendo seu metabolismo, é essencial. Nada é mais racional do que isso.

A questão é o caminho para que uma sociabilidade diversa possa existir. A fome limita a existência. O desespero da fome enlouquece. Impede a atuação política. Nos torna ainda mais frágeis. Então, é urgente a mudança de curso, nem que seja apenas para que a aposta pública não seja mais em fazer morrer, de fome ou asfixia.


Texto em português do Brasil

Fonte: Brasil de Fato

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