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Segunda-feira, Março 18, 2024

Geopolítica: Pensar fora da caixa

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

Esta notícia do EXPRESSO no passado dia 9 de Maio (o dia em que os russos assinalam o fim da II Guerra Mundial, ou como eles próprios dizem, o Dia da Vitória na Grande Guerra Patriótica) sintetiza na perfeição o dogma maniqueísta que rodeia as guerras e que volta a ser explorado até à saciedade: o “nós” contra o “eles”, ou pior ainda, o mito dos “bons” contra os “maus”.

Não sendo nunca de mais condenar os malefícios e os sacrifícios que os conflitos impõem às populações, é igualmente indispensável que comentaristas e analistas transmitam algo mais que aquilo que os propagandistas veiculam; que dêem outras perspectivas da situação e do que do conflito pode resultar. Por outras palavras, que fomentem o pensamento crítico, também designado como fora da caixa, o que pode ser feito por duas vias: uma mais contida e formatada dentro dos padrões vigentes (como propõe o embaixador Francisco Seixas da Costa, neste artigo de opinião no EXPRESSO) ou outra menos convencional, alertando, por exemplo, para a grande probabilidade de não resultar deste conflito uma nova bipolarização (tipo Leste-Oeste, como a que conhecemos durante a chamada Guerra Fria), antes o colapso dos cinco séculos de modelo civilizacional eurocêntrico, responsável pela Revolução Industrial, mas também pelo colonialismo, nem um multilateralismo que consiga prevenir a quase inevitabilidade de uma nova e mais aberta fase no confronto entre os EUA e a China.

Nunca será demais alertar que a mais gritante incapacidade política de conter aquele colapso degenerou neste conflito; mas essa elevada responsabilidade permanece oculta e fora da percepção pública, enquanto se repetem até à exaustão os malefícios e as vilanias dos “outros” e se escamoteia a responsabilidade e a arrogância de um Ocidente que não consegue ver-se noutro papel que não o de um invencível justiceiro.

O pensamento dogmático ocidental fala de paz, mas deseja um longo e profundo atoleiro. Fornece abertamente equipamento militar a um dos lados (vamos ver o que a prazo mais se descobrirá) enquanto inviabiliza o aparecimento de qualquer mediador credível (exemplo disso mesmo são notícias assegurando que a China culpa Estados Unidos e expansão da NATO pela guerra na Ucrânia, enquanto pouco relevo foi dado à vídeo conferência que no dia 8 de Maio juntou o presidente francês, Emmanuel Macron, o chanceler alemão Olaf Scholz e o presidente chinês Xi Jinping, onde este apelou à “máxima contenção” no conflito ucraniano) e insistindo na ideia que a paz só será possível se o establishment russo se livrar de Putin (o cenário ocidental ideal). Mas esta estratégia terá o defeito de não perceber que a popularidade de Putin não é fruto exclusivo da propaganda, antes de uma percepção da História que o Ocidente não tenta sequer compreender e onde o fenómeno marcante da Segunda Guerra Mundial (a Grande Guerra Patriótica que ceifou a vida a 27 milhões de russos) não foi o genocídio judaico, mas o da cultura e língua eslavas. Por mais estranho que nos possa parecer, as declarações do ex-presidente ucraniano, Petro Poroshenko, em que se comprometeu a proibir a língua e a cultura russa na Ucrânia terão ecoado de forma especialmente sinistra nos ouvidos russos.

Assim, não só o establishment russo, qualquer que seja seu interesse económico, hesitará em se livrar de Putin, como o seu possível afastamento não deverá ser suficiente para trazer a opinião pública russa de volta a perspectivas mais favoráveis ao Ocidente.

Tudo isto aponta para um cenário de prolongamento da guerra e de desastre para todo o modelo civilizacional ocidental, tanto mais que a pronta colagem europeia à estratégia de sanções e boicotes norte americanos retirou toda a margem de manobra à Europa para agora ensaiar, com sucesso, qualquer tipo de mediação e as ocasionais referências ao facto desta crise estar a aproximar os europeus poderão não passar de meros fogachos que se extinguirão com o prolongamento do conflito. Quanto mais longe estiver o seu fim, mais os países europeus tenderão a revelar as suas fracturas e divergências, tanto mais que esta crise, deixando emergir o risco de guerra intra-europeia e ameaçando transformar-se num projecto monolítico reservado aos que pensarem do mesmo modo, veio agravar significativamente a percepção do fracasso do projecto de paz europeu.

A este fiasco político corresponde, numa perspectiva puramente económica, a nova machadada na credibilidade das concepções liberais e depois da revelação das fragilidades criadas pela financeirização da produção, assistimos agora a uma crise de crescimento e prosperidade ligada à inflação galopante que a crise ucraniana agravou e da qual poderá resultar um colapso total da capacidade de acção dos Estados que levará a um choque demográfico ligado a crises de fome/doença, ou ao restabelecimento de Estados fortes na lógica do controle de preços e de uma economia mais planificada e menos abandonada aos famigerados ditames da “mão invisível”.

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