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Quarta-feira, Março 27, 2024

Gilka Machado, uma mulher à frente de seu tempo

Mulher, negra e empregada doméstica, poeta era feminista e tinha plena consciência de classe.

Gilka Machado (1893-1980), poeta simbolista carioca, reconhecida hoje como uma das autoras mais singulares de nossa literatura, pela temática ousada de sua poesia, que valoriza o erotismo feminino e as religiões afrobrasileiras, sofreu com o preconceito e a exclusão por ser mulher, negra, empregada doméstica, sem educação formal e ainda por cima feminista – foi uma das fundadoras do Partido Republicano Feminino, em 1910, que defendia o direito das mulheres ao voto.

A poeta carioca, mulher avançada para o seu tempo, tinha plena consciência de classe, como demonstra o seu poema Ode aos Trabalhadores, que apresenta a seguinte dedicatória: “Aos trabalhadores que construíram a cidade do Rio de Janeiro”. Como poeta, chocou a crítica especializada da época por escrever poemas eróticos, em que o sexo é apresentado a partir de um olhar feminino, em versos como estes:

“e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão
de que se vai abrir
todo meu corpo em poemas”.

Some-se a isso a modernidade radical de parte da obra de Gilka, como estes versos do poema Língua:

“Língua-lâmina,língua-labareda,
língua-linfa, coleando, em deslizes de seda…
Força inféria ou divina
faz com que o bem e o mal resumas,
língua-cáustico, língua-cocaina,
língua de mel, língua de plumas…”

que recordam a escritura barroquizante de um Haroldo de Campos.

Como se não bastassem todas essas ousadias, a autora ainda escreveu poemas sobre o candomblé, numa época em que os terreiros eram invadidos e fechados pela polícia. Por todas essas razões, a autora foi excluída, por décadas, do cânone literário, das antologias e dos estudos de literatura brasileira, sendo reconhecida tardiamente; suas obras completas tiveram três edições, a primeira em 1978 e as seguintes em 1992 (organizada por sua filha, Eros Volúsia) e 2017, esta última, mais recente, organizada por Jamyle Rkain e publicada pela editora Demônio Negro. A despeito de sua situação marginal na literatura brasileira, Gilka Machado recebeu a admiração e o apoio de Olavo Bilac, Mário de Andrade e Nelson Rodrigues, além de ser citada pelo poeta simbolista baiano Pedro Kilkerry e indicada para a Academia Brasileira de Letras por Jorge Amado, em 1977.

A poesia de Gilka Machado é densa, sensorial, hermética, faz amplo uso da metáfora, da imagem poética, dos jogos sonoros aliterativos, da métrica, da sinestesia e foi incluída pelos críticos literários no âmbito do simbolismo, que não se limita aos poucos autores incorporados ao cânone, como Alphonsus de Guimaraens, Cruz e Sousa e, mais recentemente, Pedro Kilkerry. Nosso simbolismo atravessou a segunda metade do século 19 e permaneceu ativo até as primeiras décadas do século 20, destacando-se o trabalho de poetas como Gilka Machado, Cecília Meireles (menos moderna do que simbolista), Ernâni Rosas, Maranhão Sombrio, Dario Velozo e outros poetas, menos conhecidos, que Andrade Muricy reuniu em seu livro Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro.

Este simbolismo tardio, contemporâneo da Semana de Arte Moderna de 1922 e, no caso de Hilda Hilst e Lupe Cotrim, do movimento da Poesia Concreta, iniciado na década de 1950, pareceu a muitos críticos como anacrônico; hoje, podemos discordar dessa opinião, motivada pelo conceito de “linha evolutiva” na poesia, deslocado pela pós-modernidade, e resgatarmos poetas injustamente rejeitados por insistirem numa proposta estética sempre malvista entre nós, aliás, desde o início do simbolismo no Brasil.

Os motivos desse desprezo aos herdeiros tropicais de Rimbaud e Verlaine nunca foram nobres: os simbolistas brasileiros nasceram em estados “periféricos”, situados à margem do eixo parnasiano Rio-São Paulo, como é o caso do baiano Pedro Kilkerry, do amazonense Maranhão Sobrinho, dos catarinenses Cruz e Sousa e Ernani Rosas, do paranaense Dario Veloso, para citarmos poucos exemplos. Nem todos pertenceram à elite branca masculina, como foi o caso do juiz de direito mineiro Alphonsus de Guimaraens: alguns foram negros, filhos de escravos, como Cruz e Sousa e Pedro Kilkerry, e outros, mulheres, como Gilka Machado, Lupe Cotrim e Hilda Hilst. Ao preconceito estético, que condenava as excentricidades sonoras, sintáticas e semânticas da poesia simbolista, somaram-se os preconceitos, racistas e misóginos de uma sociedade (ainda hoje) fortemente excludente.

Gilka Machado nasceu em 1893, na cidade do Rio de Janeiro, em uma família de artistas; sua mãe, Thereza Cristina Moniz da Costa, era atriz e seu pai, Hortêncio da Gama Souza Melo, poeta. Começou a escrever poemas ainda criança. Aos 14 anos de idade, participou de um concurso literário realizado pelo jornal A Imprensa, ganhando os três prêmios principais usando diferentes pseudônimos. Quando foi revelada a sua identidade, os críticos ficaram escandalizados ao saberem que aqueles versos, de teor erótico, foram escritos por uma jovem mulher e ela foi chamada de “matrona imoral”.

Anos mais tarde, a poeta carioca seria chamada, por Agripino Grieco, de “bacante dos trópicos”, enquanto Humberto de Campos aponta-lhe uma “mentalidade de crioula” e uma “bizarra imaginação”. Lindolfo Gomes, por sua vez, escreveu que Gilka Machado padecia da “tara da família”, embora fosse menos “vítima do sangue familiar” do que do “sangue do marido”, que a “obrigaria” a escrever “aqueles versos escandalosos”.

Apesar de toda a incompreensão por parte da crítica, seu livro de estreia, Cristais Partidos, foi publicado em 1915, quando a autora tinha 22 anos. Nos anos seguintes, publicou os livros de poesia A Revelação dos PerfumesEstados de AlmaMulher NuaO Grande AmorMeu Glorioso PecadoCarne e AlmaSublimaçãoMeu Rosto e Velha Poesia, este último publicado em 1968. Apenas pelo exame dos títulos dos livros, percebemos a ênfase erótica, sobretudo em Mulher Nua e Meu Glorioso Pecado, mas também a tensão platônica entre matéria e espírito, com o inevitável corolário de origem cristã do sentimento de culpa, nos títulos Carne e Alma e Sublimação.

Estes são, aliás, alguns dos eixos temáticos de sua poesia, como podemos verificar pela leitura de alguns de seus poemas, escolhidos especialmente para esta publicação no “Prosa, Poesia e Arte” do PV.

Emotividade da cor

(A Dolores Marques Caplonch e a Miguel Caplonch)

Sete cores — sete notas erradias,
sete notas da música do olhar,
sete notas de etéreas melodias,
de sons encantadores
que se compõem entre si,
formando outras tantas cores,
do cinzento que cisma ao jade que sorri.

Há momentos
em que a cor nos modifica os sentimentos,
ora fazendo bem, ora fazendo mal;
em tons calmos ou violentos,
a cor é sempre comunicativa,
amortece, reaviva,
tal a sua expressão emocional.

Lançai olhares investigadores
para a mancha dos poentes:
há cores que são ecos de outras cores,
cores sem vibrações, cores esfalecentes,
melodias que o olhar somente escuta,
na quietude absoluta,
ao Sol se pôr…
Quem há que inda não tenha percebido
o subjetivo ruído
da harmonia da cor?

(…)

— A Cor é o aroma em corpo e embriaga pelo olhar.
Cor é soluço, cor é gargalhada,
cor é lamento, é suspiro,
e grito de alma desesperada!
Muitas vezes a cor ao som prefiro
porque a minha emoção é igual à sua:
— parada, estatelada
dizendo tudo, sem que diga nada,
no prazer ou na dor.

Olhar a cor
é ouvi-la,
numa expressão tranquila,
falar de todas as sensações
caladas, dos corações;
no entanto, a cor tem brados,
mas brados estrangulados,
mágoas contidas,
mudo querer,
ânsia, fervor, emotividade
de desconhecidas
vidas,
que se ficaram na vontade,
que não conseguiram ser…

Cores são vagas, sugestivas toadas…
Cores são emoções paralisadas…

 

Lingua

Lépida e leve,
em teu labor que, de expressões a míngua,
O verso não descreve…
lépida e leve,
guardas, ó língua, em teu labor,
gostos de afago e afagos de sabor.
És tão mansa e macia,
que teu nome a ti mesmo acaricia,
que teu nome por ti roça, flexuosamente,
como rítmica serpente,
e se faz menos rudo
o vocábulo ao teu contato de veludo.
Dominadora do desejo humano,
estatuária da palavra,
ódio, paixão, mentira, desengano,
por ti que incêndio no Universo lavra!…
És o réptil que voa,
o divino pecado
que as asas musicais às vezes, solta, atôa,
e que a Terra povoa e despovoa,
quando é de seu agrado.
Sol dos ouvidos, sabiá dotato,
ó língua — idéia, ó língua — sensação,
em que olvido insensato,
em que tolo recato,
te hão deixado o louvor, a exaltação!
tu que irradiar pudeste os mais formosos poemas!
tu que orquestrar soubeste as carícias supremas!
Dás corpo ao beijo, das antera à boca,
és um tateio do coração,
és o elástico da alma… O` minha louca
língua, do meu Amor penetra a boca,
passa-lhe em todo senso tua mão,
enche-o de mim, deixa-me oca…
— tenho certeza minha louca,
de lhe dar à morder em ti meu coração!…
Língua do meu Amor, velosa e doce,
que me contornas, que me veste quasi,
que me convences de que sou frase,
como si o corpo meu de ti vindo me fosse!
Língua que me cativas, que me enleias
os surtos de ave estranha,
em linhas longas de invisíveis teias,
de que és, há tanto, habilidosa aranha.
Língua-lâmina, língua-labareda,
língua-linfa, coleando, em deslizes de seda…
Força inféria ou divina
faz com que o bem e o mal resumas,
língua-cáustico, língua-cocaina,
língua de mel, língua de plumas…
Amo-te as sugestões gloriosase funestas,
amo-te como todas as mulheres
te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor,
pela carne de som que à idéia emprestas
e pelas frases mudas que proferes
nos silêncios de amor!…

 

Volúpia

Tenho-te, do meu sangue alongada nos veios;
a tua sensação me alheio a todo o ambiente;
os meus versos estão completamente cheios
do teu veneno forte, invencível e fluente.
Por te trazer em mim, adquiri-os, tomei-os,
o teu modo sutil, o teu gesto indolente.
Por te trazer em mim moldei-me aos teus coleios,
minha intima, nervosa e rubida serpente.
Teu veneno letal torna-me os olhos baços,
e a alma pura que trago e que te repudia,
inutilmente anceia esquivar-me aos teus laços.
Teu veneno letal torna-me o corpo langue,
numa circulação longa, lenta, macia,
a subir e a descer, no curso do meu sangue.

 

Impressões do gosto

A uma bailadeira
A tua dança indefinida,
que me retém extática, surpresa,
guarda em si resumida
a harmonia orquestral da natureza,
a euritmia da Vida.
(…)
Danças, os membros novamente agitas,
todo teu ser parece-me tomado
por convulsões de dores infinitas…
E desse trágico crescendo
de gestos que enchem o silêncio de ais,
vais
smorzando, descendo,
como que por encanto,
presa de um místico quebranto…
Danças e cuido estar em ti me vendo.
Os teus meneios
são
cheios
de meus anseios;
a tua dança é a exteriorização
de tudo quanto sinto:
minha imaginação
e meu instinto
movem-se nela alternadamente;
minha volúpia, vejo-a torça, no ar,
quando teu corpo lânguido, indolente,
sensibiliza a quietação do ambiente,
ora a crescer, ora a minguar
numa flexuosidade de serpente
a se enroscar
e a se desenroscar.
Em tua dança agitada ou calma,
de adejos cheia e cheia de elastérios,
materializa-se minha alma,
pois nos teus membros leves, quase etéreos,
eu contemplo os meus gestos interiores,
meus prazeres, meus tédios, minhas dores!

 

O retrato fiel

Não creias nos meus retratos,
nenhum deles me revela,
ai, não me julgues assim!
Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.
Toda minha faceirice
e minha vaidade toda
estão na sonora face;
naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.
Os meus retratos são vários
e neles não terás nunca
o meu rosto de poesia.
Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.

 

Silêncio

Mysteriosa expressão da alma das cousas mudas,
Silencio – pallio immenso aos enigmas aberto,
espelho onde a tristeza universal se estampa.
Silencio – gestação das dores crueis, agudas,
solenne imperador da Treva e do Deserto,
estagnação dos sons, berço, refugio e campa.
Silencio – tenebroso e insondavel oceano,
tudo quanto nos teus abysmos vive immerso,
tem a secreta voz dos rochedos, das lousas.
És a concentração do ser pensante, humano,
a vida espiritual e occulta do universo,
a communicação invisivel das cousas.
Um intimo pezar toda tua alma invade,
ó meu velho eremita! ó monge amargurado!
Dentro da cathedral da verde natureza,
ouço-te celebrar a missa da Saudade
e invocar a remota effigie do Passado,
dando-me a communhão sublime da tristeza.
Seja engano, talvez, do meu cerebro enfermo,
mas eu comprehendo os teus sentimentos profundos,
eu te sinto cantar olentes melopéas…
Foste o inicio de tudo e de tudo és o termo.
Silencio – concepção primitiva dos mundos,
cosmopéa etheral de todas as idéas.
Silencio – solidão de symptomas medonhos,
pantano onde do mal desenvolvem-se os vermes,
fonte da inspiração, rio do esquecimento,
lagôa em cujo fundo os sapos dos meus sonhos,
postos alheiamente, inanimes, inermes,
fitam de estranho ideal o fulgor opulento.
Ó Silencio! Ó visão subjectiva da Morte!
– refúgio passional que eu sempre busco e anceio,
gôso de recordar… torturas e confortas,
pois fazes com que ao teu influxo eu me transporte
ao seio da Saudade, a esse funereo seio
– esquife onde revejo as illusões já mortas.
Da scisma na minha alma o triste cunho imprimes,
és o somno, o desmaio, o natural mysterio,
trazes-me a sensação dos gélidos tormentos;
e si nesse teu ventre hão germinado os crimes,
no teu cérebro enorme, universal, ethereo,
têm-se desenvolvido os grandes pensamentos.

 


por Claudio Daniel, Poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutorado em Teoria Literária pela UFMG  |   Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


 

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