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Sexta-feira, Setembro 20, 2024

“I, António Guterres…”

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Primeiro-Ministro de Portugal (1995-2002), ACNUR (2005-2015), Secretário-Geral da ONU (12 de Dezembro de 2016, com início de funções previsto para Janeiro),  foi também Presidente da maior organização política mundial, a Internacional Socialista (1999-2005) e Secretário-Geral do PS. Terá certamente trabalho para dez anos!

A ONU e o futebol

Dei uma vista de olhos (online, às 21:53 de ontem, 12.12.2016) por alguns importantes jornais: “The New York Times”, “El País”, “La Repubblica”, “Le Monde”. A notícia só estava em primeira página em “Le Monde”. A bola de ouro de Ronaldo aparecia em todos menos no NyT. E com maior destaque.  Está tudo dito.

Reconheço e admiro o génio futebolístico do Ronaldo. Mas creio que um pouco mais de atenção à posse do novo Secretário-Geral da ONU numa fase caótica e perigosa das relações internacionais talvez fosse útil, dando sinais de que é preciso agir antes que novas tensões e tragédias se abatam sobre nós. É na ONU que se pode evitar guerras, negociar a paz, estabelecer pontes diplomáticas para prevenir crises. E o Secretário-Geral, se conseguir afirmar uma liderança, poderá ser de grande importância para iniciar um processo que se está a tornar absolutamente imperativo e urgente num mundo em caótica deriva.

Essa liderança precisa da atenção da grande imprensa! Sobretudo daquela que é mais sensível aos valores de que a ONU é matricialmente portadora. Guterres é o senhor que se segue a uma plêiade de nomes que, de qualquer modo, fizeram história: Trygve Lie (o primeiro, 1946), Dag Hammarskold, U Thant, Kurt Waldheim, Perez de Cuellar, Boutros Boutros-Ghali, Kofi Annan e Ban Ki-Moon (o último e talvez o mais apagado).

O novo Secretário-Geral, para ganhar a bola de ouro da política internacional, também precisa, além de uma boa equipa, de uma boa claque.  E a mesma imprensa que toma partido em eleições presidenciais também tem o dever de apoiar quem quer promover a paz nesse jogo difícil, complexo e perigoso das relações internacionais!

A ONU e a paz

Os desafios da ONU são, hoje, porventura os mais difíceis de sempre, desfeitos os equilíbrios que durante cerca de 40 anos governaram o mundo. Claro, não foi fácil suceder (em 1945) à malograda “Sociedade das Nações” (1919), num mundo dilacerado pelas duas guerras mundiais e por dezenas de milhões de mortos. Mas a ideia de paz acabou por se impor, no plano mundial, com a ONU e, no plano europeu, com a CECA (Paris, 1952) e depois com o Mercado Comum (Roma, 1957), a Comunidade Europeia e a União Europeia (Maastricht, 1993).

Essa mesma ideia que agora regressa como forte prioridade no discurso do novo Secretário-Geral. Com Guterres, a ONU será mais sensível ao problema dos refugiados, tendo ele sido ACNUR durante dez longos anos. Mas, neste seu tempo, o mundo também se encontra em complexas dificuldades, agora que os USA vão ser governados por um Presidente imprevisível, pouco sensível à ONU, ao desenvolvimento sustentável, aos equilíbrios internacionais (veja-se o recente caso com a China), às exigências da NATO e à solidariedade global, questões tão enfatizadas por Guterres no seu discurso. Um Presidente, o americano, que mais do que prevenir crises parece soprar nelas para as reacender com maior intensidade. Bem conhecemos o elevado preço que estamos a pagar pelos erros do seu antecessor republicano! Tudo isto tornará mais difícil a vida ao novo inquilino da ONU.

Problemas que se acrescentam aos que já estão aí instalados e que, paradoxalmente, poderão constituir-se como obstáculos à desejada reforma da Organização, agora reivindicada pelo novo Secretário-Geral, uma vez que a urgência dos problemas tende sempre a tornar-se amiga do adiamento das reformas.

O Secretário-Geral

O Secretário-Geral é o mais alto funcionário da ONU, com funções administrativas, diplomáticas e políticas, tendo não só a faculdade de suscitar ao Conselho de Segurança questões relativas a situações de crise e de inscrever temas na agenda da Assembleia Geral, como a de desempenhar missões diplomáticas em nome de ambos.

De resto, o Secretário-Geral, sendo o rosto visível da ONU, acaba por assumir um protagonismo que de algum modo transcende as suas próprias competências formais. Ele dispõe, por isso, de uma boa margem de manobra para lidar com a situação política internacional naquilo que são as grandes questões da paz e da autodeterminação, agindo no interior da Organização, mas também promovendo iniciativas directas junto dos Estados Membros.

Os desafios

O New York Times (em Outubro) dedicou um Editorial a António Guterres – “A New Voice for a Complicated World” – e à sua missão e pôs em evidência, além da suas qualidades pessoais e experiência  (“experience, energy and diplomatic finesse”), as principais questões que se lhe porão de imediato: guerras regionais, tensões entre a Rússia e o mundo ocidental, a posição da China na Ásia, a crise dos refugiados no Médio-Oriente e na Europa, a questão nuclear no Irão e na Coreia do Norte, o problema da fome de milhões de pessoas, o posicionamento da ONU num mundo onde terrorismo e guerra estão misturados e promovidos por múltiplas forças.

Tudo isto, quando a própria ONU tem a sua credibilidade para as soluções de paz de algum modo afectada, sendo também esta a razão pela qual Guterres anuncia a necessidade de promover a mudança! Razões internas e problemas por esse mundo fora.

O exemplo de Guterres

É consensualmente reconhecida a natural vocação de Guterres para a mediação e para lidar com estes gravíssimos problemas, as suas capacidades diplomáticas e, sobretudo, a sua assumida mundividência de inspiração social e solidária.

A formação, a sensibilidade e a longa experiência em importantes organizações internacionais ajudá-lo-ão na sua missão.  E o seu caso, até pelo modo como conquistou esta posição, deveria pôr as nossas elites a reflectir sobre a vocação política e a ética pública: o seu desprendimento aliado a uma forte determinação pelo serviço público, os seus valores conjugados com um pragmatismo de inspiração humanista, a sua inteligência posta ao serviço de uma grande sensibilidade ao universo do sofrimento e da dor.

O seu percurso, as suas opções de vida e os valores que abraçou podem ajudar-nos a compreender que o dinheiro não é tudo, que se pode ir longe agarrados tão-só a valores simples, que a ética pública tem uma dimensão humana que ultrapassa esse pragmatismo utilitarista que parece comandar a vida da maior parte das elites no poder. Esse desprendimento dos bens mais comezinhamente materiais conjugado com uma forte e empenhada afeição aos valores intangíveis, sejam eles de natureza ética, política, filosófica ou artística, também pode conhecer justa recompensa quando essa atitude representa um desafio autêntico de vida.

Sabe-se que a ONU precisa de uma forte reestruturação e redefinição. Sobretudo nos tempos conturbados que conhecemos. E creio que, se para esta viragem for necessário um consistente esforço de mediação política e diplomática, ele será o homem certo.

Boa sorte, António Guterres!

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