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Sábado, Outubro 5, 2024

Invasão do Capitólio à luz da História: a tradição da extrema direita

Sobre o trumpismo, é urgente considerar que a extrema direita nos Estados Unidos é maior do que o incontrolável presidente. Ela é parte das tradições norte-americanas como o próprio contrato social que agora é questionado por muitos.

Mary Anne Junqueira (Acervo pessoal)

No dia 6 de janeiro uma multidão tomada por fúria e ressentimento tomou de assalto o Congresso dos Estados Unidos. Tratou-se da maior ocupação do prédio público que se tem notícia. Antes disso, o Capitólio esteve sob fogo cerrado na guerra de 1812 com a Inglaterra. Na época, o país europeu quis restringir a veloz conquista do Oeste por parte dos Estados Unidos e conter o comércio do país, sobretudo com a França, em razão das guerras napoleônicas. Os norte-americanos atearam fogo em Toronto, Canadá, em abril de 1813. A retaliação veio em agosto de 1814, quando Washington foi tomada, e Capitólio, Casa Branca e estaleiros da U. S. Navy incendiados.

Há ainda registros de outros tipos de violência no prédio desde sua construção em 1800, mas o que vimos no dia 6 de janeiro foi inédito, brutal e grotesco: edifício invadido, depredado e conspurcado. Mais: levado a cabo por nacionais. A iniciativa posta em prática pela extrema direita, alguns de última hora mobilizados por Donald Trump e redes sociais, não é boa para os Estados Unidos nem para os que prezam governos pautados por contratos sociais. Já que o país é referência na matéria, apesar dos limites e contradições. O país que garante eleições indiretas e contínuas desde 1789, quando da formação da República representativa, tem convivido muito bem com aspectos não democráticos do país desde então.

Muito se tem falado do presidente que insuflou a invasão, Donald Trump, e do trumpismo. O homem, apesar dos mais de 74 milhões de voto, perdeu muito: a presidência, apoios na Câmara e Senado e o seu lugar entre os republicanos. Partido que tem abrigado a extrema direita e agora se vê frente a dilemas quanto ao seu futuro.

Sobre o trumpismo, é urgente considerar que a extrema direita nos Estados Unidos é maior do que o incontrolável presidente. Ela é parte das tradições norte-americanas como o próprio contrato social que agora é questionado por muitos. Entretanto, essa extrema direita, supremacista branca, que faz uso de táticas militares e iniciativas terroristas, nos remete ao pós Guerra Civil (1861-1865). Período da emergência das sociedades secretas, supremacistas brancas, constituídas no sul derrotado. Entre elas, The Knights of the White CameliaWhite League e a famosa e influente Klu Klux Klan, fundada em 1865. Essas e outras organizações ganharam apoiadores e se ramificaram entre os sulistas.

A Klan atravessou os séculos entre declínios e ressurgimentos, alcançando o século 21. A maioria dessas sociedades secretas foi fundada por ex-oficiais confederados, inconformados e ressentidos com a derrocada do Sul. Acima de tudo, temerosos de que os negros adquirissem direitos políticos. Elas foram centrais para pavimentar o caminho para a segregação racial no Sul que acabou por atingir todo o país.

Muitos dos que invadiram o Capitólio, em 6 de janeiro, ostentavam orgulhosamente a bandeira da Confederação e insígnias da Klan, entre outros símbolos. A bandeira confederada era (e é) distintivo do que se configurou chamar “nacionalismo sulista”. Para se ter ideia dos usos do passado da Confederação: apenas em 2020 — após o supremacista Dylan Roof, em 2015, abrir fogo na igreja de afro-americanos, em Charleston, e da consequente batalha dos monumentos —, os Marines Corps aboliram o uso de símbolos sulistas na arma.

Do mesmo modo que a extrema direita solidamente estabelecida, a existência de congressistas que apoiam supremacistas brancos está ancorada firmemente na História norte-americana. A lista não é pequena, muitos ex-klansmen serviram como deputados, senadores, juízes federais e governadores, nos séculos 19 e 20. Na mesma direção, em 2021, alguns congressistas não esconderam seu apoio a Trump e aos movimentos extremistas. Muitos devem a atual posição aos votos que receberam de apoiadores desse espectro político.

Soldados dos EUA estão em frente ao edifício do Capitólio dos EUA (U.S. Army National Guard photo by Sgt. Andrew Walker)

Donald Trump é líder prestigiado dessa extrema direita. Ele deu lugar a ela na política e reforçou a comunicação com grupos extremistas. Entretanto, essa liderança é circunstancial. As indicações são de que ela (a extrema direita), permanecerá, ainda que não saibamos se ganhará mais espaço ou voltará às margens onde esteve, por exemplo, durante a Guerra Fria. Portanto, o trumpismo é circunstancial tanto quanto Donald Trump.

No século 21, a extrema direita que vinha crescendo desde as últimas décadas do 20, irrompeu graças às redes sociais e à Deep web, e não só nos Estados Unidos. Hoje recebe nomes diversos: alt-rightfar-rightextreme right etc. Congrega milícias (como Oath KeepersProud BoysThree Percenters), grupos cristãos diversos (muitos anticatólicos), neo-nazistas, como o Creativity Movement, entre outros. Parte das milícias compara-se aos patriotas do período da Independência do país. Isso explica por que o ano da emancipação, 1776, é clamado por esses grupos. Por exemplo, a loja on-line dos Proud Boys, que reúne apenas homens, a quem Trump pediu prontidão (stand by) quando da eleição em novembro, orgulhosamente chama-se: 1776.shop.com

Ainda que enraizada na tradição, a extrema direita nos Estados Unidos mobiliza símbolos, discursos e iniciativas não apenas da tradição supremacista do país, mas também dos nazistas e fascistas europeus. Mesmo as organizações supremacistas norte-americanas do 19 mobiliza(va)m temas da Europa medieval. Hoje, além de Cruzados e Templários, ostentam mitologia racial nórdica, cujos símbolos foram igualmente expostos na invasão do Capitólio.

Se a extrema direita está solidamente radicada na tradição histórica dos Estados Unidos, o que é atual na invasão do Congresso? Pode-se destacar pelo menos dois aspectos recentes: a própria natureza desse tipo de direita é mais diversificada, de alcance nacional e com vínculos internacionais. Para se ter ideia, em 2019, o site Southern Poverty Law Center que monitora grupos de ódio (antissemitas, anti-imigrantes, supremacistas, misóginos, islamofóbicos etc.) rastreou 940 grupos nos Estados Unidos. Número que certamente cresceu em 2020. Além disso, registrou a existência de 1747 símbolos da Confederação em todo o território nacional, contra os quais moderados e progressistas, entre eles o movimento Black Lives Matter, têm se defrontado nos últimos anos.

O segundo aspecto está relacionado com a mais incontornável iniciativa do presidente e seguidores: não aceitar os resultados da eleição de novembro de 2020. Não é novidade que milicianos e organizações secretas rejeitem o status quo. Mas pelo menos na História recente do país, é a primeira vez que regras do jogo antes acordadas são tão veementemente recusadas. Tal negação, tenta deslocar o democrata Joe Biden para o espaço nebuloso da ilegitimidade, o que pode abrir para situações inusitadas como a que vimos em 6 de janeiro.

Críticas ao sistema são comuns: note-se as feitas ao Colégio Eleitoral, outra tradição norte-americana, responsável por distorções nos pleitos. Entre elas, a de assumir a Casa Branca o candidato que não leva no voto popular.

Tal deturpação, prejudicou, e muito, os democratas no século 21. Al Gore ganhou no voto popular, mas foi George W. Bush que levou em 2000, e o mesmo se deu com Hillary Clinton e Donald Trump, na eleição de 2016. Ainda que Al Gore tenha pedido recontagem dos votos, a Suprema Corte decidiu pelo Colégio Eleitoral. Al Gore e Hillary aceitaram os resultados em nome da manutenção do processo que orienta o país. Confirmar e honrar o sistema sempre foi importante para os políticos e para a maioria dos norte-americanos. Reitera-se que o que se viu nas últimas semanas foi a recusa inusual de um candidato à reeleição — que perdeu no voto popular em 2016 e 2020 — e de seus apoiadores às regras do jogo acordadas e consolidadas.

Não resta dúvida de que o democrata Joe Biden contabiliza importantes vitórias, e ele já responde àqueles que o alçaram ao mais alto posto da nação. Além dos mais de 81 milhões de votos, os democratas conduzirão a Câmara e o Senado, ainda que o último esteja dividido em 50% para cada partido. Ele, com a inestimável ajuda de Stacey Adams, ativista e ex-congressista, ajudou a virar o estado da Georgia aos democratas — num feito inédito — após 28 anos de domínio de republicanos no estado. Ainda assim, a divisão do país é incontestável. Biden herdará o país cindido por rachadura que Trump ajudou a aprofundar. No momento, Trump e a invasão do Congresso ofuscaram a transição e a celebração que deveria ser de Biden. O democrata moderado de 78 anos, de estilo discreto, reservado e avesso a arroubos, certamente terá anos difíceis pela frente.


por Mary Anne Junqueira, Professora Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas (FFLCH) da USP e do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP  |  Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

Publicado no Jornal da USP


 

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