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Quinta-feira, Março 28, 2024

“O Estado está a deixar de assegurar funções básicas de soberania”

Entrevista com João Paulo Batalha, presidente da Transparência e Integridade

Inquietudes em 2019

Ao fazer o balanço de 2018, o dirigente da Associação Cívica Transparência e Integridade, que assume a missão do “combate à corrupção”, critica o “grau de disfuncionalidade alarmante” no “eficaz funcionamento das instituições públicas”. João Paulo Batalha manifesta-se ainda preocupado com “o avanço dos extremismos e populismos” na Europa e no Mundo e alerta para os perigos da perda das democracias

Que acontecimentos elenca como mais relevantes em Portugal, pela negativa?

Pela negativa: A derrocada da estrada em Borba, em Novembro, que matou cinco pessoas. Demonstra, juntamente com a queda do helicóptero do INEM em Valongo e a demora e descoordenação nas operações de busca – e depois de um ano marcado pelas mortes nos incêndios – que o Estado está a deixar de conseguir assegurar funções básicas de soberania, a começar pela defesa da vida e integridade de pessoas e bens. Já não estamos a falar de catástrofes isoladas mas de uma falta de capacidade do Estado em dar garantias de segurança mínimas aos cidadãos, o que mostra um grau de disfuncionalidade alarmante no regular e eficaz funcionamento das instituições públicas.

A onda populista tem-se estendido um pouco por todo o mundo, traduzindo-se em democracias mais frágeis e num recuo das liberdades individuais”

A sucessão de escândalos de má conduta ética e de conflitos de interesses, quer no Parlamento (com os casos das presenças falsas, das moradas irregulares e do duplo pagamento de viagens para as ilhas), quer no Governo, nomeadamente com os casos da empresa criada pelo ministro Pedro Siza Vieira na véspera de entrar no Governo e o papel da esposa como lobista da Associação de Hotelaria de Portugal, em flagrante conflito de interesses com o cargo do marido com tutela sobre o turismo.

Que sinal dão à sociedade esses casos?

Estes escândalos revelam que as instituições continuam permeáveis a conflitos de interesses e ao aproveitamento dos cargos para benefício particular. Mas, pior ainda do que isso, revelam como as instituições públicas – no caso, o Governo e o Parlamento – não têm vontade ou capacidade de estabelecerem padrões éticos e de conduta e serem vigilantes e actuantes, quer para prevenir abusos quer para puni-los quando eles ocorrem. Quando as instituições não valorizam a ética e não desenvolvem protecções contra abusos particulares, os vícios dos maus políticos tornam-se os vícios da própria instituição que os protege. Temos de deixar de fingir que a má conduta de um deputado ou de um ministro só a ele diz respeito e garantir que as instituições desenvolvem mecanismos de integridade actuantes. Caso contrário vamos continuara aprofundar um fosso de desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas e a fazer perigar a própria democracia.

E pela positiva, que eventos mais relevantes em Portugal?

A nomeação da nova procuradora-geral da República. Depois da pressão pública exercida sobre o Governo e o Presidente da República para a recondução de Joana Marques Vidal, a nomeação de Lucília Gago foi vista como uma derrota. Mas creio que foi precisamente essa pressão pública que forçou Governo e Presidente a nomearem alguém que pudesse ser apresentada como de continuidade face a Joana Marques Vidal, já que fazia inclusivamente parte da sua equipa. Parece ser esse o caso. Lucília Gago tomou posição clara reassumindo o combate contra a corrupção como prioridade do Ministério Público, e foi inclusivamente incisiva na defesa da autonomia do Ministério Público, sugerindo até a sua possível demissão caso avancem propostas em discussão para limitar a autonomia do Ministério Público. São sinais iniciais muito positivos, que indiciam que tinha razão Joana Marques Vidal quando disse, antes do final do mandato, que o MP não voltaria atrás.

“Temos de deixar de fingir que a má conduta de um deputado ou de um ministro só a ele diz respeito e garantir que as instituições desenvolvem mecanismos de integridade actuantes”

O cancelamento da prospecção de petróleo em Aljezur e o lançamento de uma iniciativa legislativa de cidadãos contra as Parcerias Público-Privadas. Estes dois eventos, sem relação entre si, mostram que, apesar de persistirem problemas de capacitação e dificuldades de mobilização dos cidadãos em Portugal, há um papel para a cidadania e é possível mudar o rumo das coisas quando as pessoas se juntam e organizam em nome do interesse comum. O consórcio detentor da licença de prospecção de petróleo no mar do Algarve desistiu das operações face à oposição da sociedade civil, quer no plano político, quer no plano judicial. Um bom exemplo de mobilização cívica. A iniciativa legislativa de cidadãos para resgatar as Parcerias Público-Privadas rodoviárias (de que sou um dos proponentes) mostra, por seu lado, que é possível os cidadãos assumirem a liderança no combate aos grandes problemas do país – estudando a fundo os assuntos, desenvolvendo soluções e emprestando a liderança que vai faltando aos responsáveis eleitos em muitos temas chave. As PPP são um desses temas: várias auditorias do Tribunal de Contas, um relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito às PPP, publicado em 2013, e posições públicas de vários deputados e ex-governantes apontam o descalabro destas parcerias e o seu carácter ruinoso para os contribuintes, sugerindo a sua extinção. Mas nada fizeram, sendo agora um grupo de cidadãos a propor uma solução legislativa estudada e fundamentada para ultrapassar a apatia dos poderes públicos. Outro bom exemplo de que compete aos cidadãos alargar o seu espaço de intervenção pública e exigir e procurar as soluções concretas para os problemas sempre adiados.

Onda extremista

E na Europa e no mundo, o que destaca?

O avanço dos extremismos e populismos, manifestado em eleições na Hungria que consolidaram o poder de Viktor Orban; e no Brasil, com a eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência. As eleições mostram que quando o sistema democrático não se revela eficaz para atender às preocupações e ansiedades das populações torna-se vulnerável à tomada de poder por parte de líderes oportunistas com discursos anti-sistema. Uma democracia de qualidade não se mantém só pelas suas instituições, mas pela legitimação dos cidadãos nas urnas, mas também (e sobretudo) no exercício concreto das liberdades cívicas no dia-a-dia.

O Governo implementou um código de conduta que já provou ser inútil ou inócuo”

Quando os cidadãos deixam de acreditar que a democracia esteja a funcionar para proteger o bem comum e se vê, em vez disso, capturada pela corrupção esses cidadãos deixam de defender essa democracia em que não acreditam. A onda populista tem-se estendido um pouco por todo o mundo, traduzindo-se em democracias mais frágeis e num recuo das liberdades individuais que é hoje o traço mais preocupante da evolução política das sociedades ocidentais. É algo a que os políticos deviam estar atentos, porque lhes cabe um papel imprescindível de liderança no combate a esta onda extremista que, sob a capa do protesto contra quem deixa degradar as democracias, se propõe, em termos práticos, acabar com elas.

Medidas tardam

Com frequência, a Associação Transparência e Integridade denuncia casos que inquietam os cidadãos levando à conclusão de que a corrupção espreita a cada esquina. Que mensagem quer deixar sobre a actual conduta da elite política?  

Muito simplesmente, actuem. A sucessão de casos de má conduta e falta de ética – degenerando em casos importantes de grande corrupção – é um sinal de alerta para a necessidade urgente de travar a perda de legitimidade da democracia e revalorizar as instituições democráticas. Em resposta a casos de falta de ética e conflitos de interesses, o Governo implementou um código de conduta que já provou ser inútil ou inócuo, enquanto a Assembleia da República vem discutindo há mais de dois anos um conjunto disperso de medidas de reforço da transparência (que não estão alicerçadas em estudo aturado dos problemas e vulnerabilidades, ou num debate público alargado sobre os problemas), mas tarda em tomar medidas.

No Parlamento continua a vigorar a cultura de que cabe a cada deputado vigiar o seu próprio comportamento, porventura com alguma intervenção dos grupos parlamentares, mas sem que a própria Assembleia estabeleça regras e mecanismos de fiscalização. A Subcomissão de Ética nunca identifica (muito menos sanciona) conflitos de interesses entre os deputados e, apesar de discutir e promover alterações pontuais nalguma lei ou regulamento, o Parlamento – e, por extensão, a generalidade dos partidos políticos – continua a não perceber a necessidade urgente de um sistema nacional de integridade que defenda as instituições do dano causado por persistentes casos de abuso ético.

Olhando para a degradação das democracias a que assistimos um pouco por todo o mundo, corremos o risco de não termos muitas mais oportunidades para desperdiçar”

E neste final de ano, que palavras dirige àqueles que executam, legislam e decidem?

Os responsáveis políticos têm de aceitar, com humildade, que estes casos são tóxicos para a confiança dos cidadãos na democracia e têm de convocar a academia e a sociedade civil a participar numa discussão aberta sobre as melhores formas de resolver estas falhas e proteger – e aumentar – a qualidade da democracia. Queixarem-se dos populistas ou da comunicação social revela uma mentalidade de cerco, em que os políticos não confiam nos cidadãos, que por sua vez não confiam nos políticos. É um ciclo vicioso que tem de ser atalhado com abertura, humildade, franqueza e frontalidade. O que tem faltado é liderança política para encarar o problema e enfrentá-lo. Continuamos a perder oportunidades para exercer essa liderança e, olhando para a degradação das democracias a que assistimos um pouco por todo o mundo, corremos o risco de não termos muitas mais oportunidades para desperdiçar.

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