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Terça-feira, Setembro 10, 2024

Lisboa, para além do caso Robles

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

As dinâmicas sociais continuarão a fazer sair habitantes de Lisboa, a permitir a entrada de outros e até a reentrada de alguns dos que saíram na sua juventude.

Quem é de Lisboa, não tem terra

Será assim? O facto é que  conheci poucos nascidos em Lisboa cujos pais, ou pelo menos avós, não fossem de outras paragens. E tive ocasião de ir conhecendo, na minha vida de estudante (“Económicas” em 1970-1975) e mais tarde profissional, estudantes que  vieram de Angola e Moçambique, ou  da “província”, e por cá se fixaram, lisboetas de origem que, obtendo emprego em Lisboa, tiveram de residir nos arredores e até outros que só conseguiram encontrar emprego qualificado na “província”.

As dinâmicas sociais continuarão a fazer sair habitantes de Lisboa, a permitir a entrada de outros e até a reentrada de alguns dos que saíram na sua juventude.

O fenómeno não é apenas lisboeta, nem apenas português (o termo “gentrificação” não terá sido cunhado cá). E, apesar de influenciado pelo actual aquecimento do mercado imobiliário, não é apenas de hoje.

Um modelo de gestão urbana sempre pressionado pelo mercado imobiliário

A gestão urbana de Lisboa a partir de 1979 tem vivido numa calma relativa, aceitando o desenrolar dos movimentos de repulsão / atracção de habitantes, procurando novos espaços de urbanização (Alta do Lumiar, zonas ribeirinhas) aceitando a degradação do edificado nas antigas zonas nobres (Avenidas Novas) ou populares (Alcântara) para permitir novas construções com maior volumetria, escondendo os seus bairros sociais (Chelas), sofrendo problemas de mobilidade mas aceitando os mais diversos pretextos para rever o traçado das novas linhas do Metro (alguém se lembra do projecto da Cidade Administrativa ?) desprezando a coordenação de transportes com os concelhos limítrofes.

A alternância de ciclos de direita e de ciclos de esquerda na gestão autárquica de Lisboa não parece ter-se reflectido nas políticas de gestão urbana, inclusive porque o partido socialista, na oposição ou no poder, não pareceu durante muito tempo  defender uma gestão diferente da praticada pela direita. Santana Lopes e Carmona Rodrigues tiveram uma gestão pouco marcante, absorvidos pela pseudo-causa do Parque Mayer que havia de obrigar o segundo e a sua equipa a renunciar aos mandatos, e pela guerra do Túnel do Marquês, o qual  acabou por ser feito e permitir a entrada mais fácil de carros em Lisboa, o que em termos amplos não contribuiu para uma mais fácil mobilidade. Sucedeu-lhes a gestão de António Costa e de Manuel Salgado, que no essencial tem parecido ser acomodatícia em relação à chamada especulação imobiliária.

Falo de “chamada especulação imobiliária” porque não posso deixar de atender a um divertido artigo de Vera Gouveia Barros em que considera serem aproveitamento de alteração de fundamentos do mercado e não especulação imobiliária os investimentos induzidos por: … baixas taxas de juro, crescimento económico, vistos gold, turismo, regime de residente não habitual, nova lei do arrendamento urbano ou modificação das preferências…Em particular, contribuíram para o aumento da procura de casas nos centros de Lisboa e do Porto. Tratando-se de zonas onde a possibilidade de aumentar a oferta de casas é limitada (embora se possa sempre – ou nem sempre – elevar o prédio em mais um andar), o resultado do livre funcionamento do mercado era óbvio: subida do preço”.

Faltou talvez a Vera Gouveia Barros indicar entre as alterações aos fundamentos do mercado a introdução de taxas liberatórias do IRS nos rendimentos prediais. Convém aliás ter presente, e já o disse em artigo anterior, que há quem não encontre outra alternativa para ganhar algum dinheiro: nem a evolução das carreiras profissionais, nem as aplicações financeiras clássicas (depósitos bancários) ou em “produtos complexos”, nem sequer a bolsa.

O caso recentemente divulgado, mas que data de 2014, do ainda jovem engenheiro civil que conhece bem Lisboa e o imobiliário através do “mercado” dos certificados de eficiência energética, tem informação sobre prédios que estão a venda, consegue dispor, em conjunto com a irmã, de capital para investir, tem capacidade para conseguir um empréstimo bancário para remodelação e beneficiação, não é excepcional nem, em si, escandaloso, aliás, como em tudo, há algum risco incorrido. Muitos mais quadros superiores e profissionais liberais estarão a investir. É a economia de mercado.

E a subida das rendas em prédios detidos por proprietários que há muito são senhorios – e que agora até já criaram, com membros da família, sociedades para gerir os seus activos imobiliários – pode explicar-se pelo mesmo motivo: não têm necessidade de subir as rendas, mas seria “imperdoável” não aproveitar a oportunidade. É a economia de mercado.

É certo que se assiste agora a uma mais larga “financeirização” do sector imobiliário. Já não são só os Fundos de Investimento imobiliário  detidos  pelos bancos e por outras entidades, é um capital financeiro organizado a nível continental ou até mundial que procura oportunidades para fazer dinheiro seja em que actividade for e seja por que processos for. O caso da Fidelidade é paradigmático – as companhias de seguros são investidores institucionais clássicos no mercado imobiliário porque se trata de uma forma tradicional, segura, rentável, de aplicar a longo prazo o valor das suas reservas técnicas. Mas é normal que queiram introduzir uma maior liquidez nas suas carteiras e um tal Fundo Apolo está disposto a comprar tudo o que possa explorar lucrativamente e de forma a obter mais valias substanciais a curto prazo. É a economia de mercado.

Se não quisermos contrariar a “economia de mercado” o mais que poderemos discutir são paliativos.

Um acordo sobre Lisboa prefigurando acordos posteriores?

De alguma coisa serviu a António Costa ter chegado ao poder a partir da Câmara  Municipal de Lisboa: por um lado, na constituição da equipa governamental e em algumas das mini-remodelações já efectuadas, tem ido buscar cada vez mais pessoal que passou pela  Câmara de Lisboa, onde o PS o conseguira colocar, por outro incorporou formalmente nas prioridades do Governo a definição de uma política de habitação e assumiu a necessidade de uma  intervenção em termos de mobilidade, para o que bloqueou in extremis  a privatização de empresas de transportes urbanos, convertendo-a em municipalização  E de certo modo o Governo está também na  Câmara de Lisboa uma vez que a presidência foi entregue por António Costa ao “tripeiro”  Fernando Medina – é certo que este deixou fugir três lugares de vereador e perdeu a maioria absoluta –  o qual em recentes declarações sobre o caso Robles manifestou a sua vontade de continuar a assegurar o cumprimento do… Programa do Governo.

Identicamente Catarina Martins terá desvalorizado junto da comunicação social a reprovação da actuação de Ricardo Robles por parte de dois membros da Comissão Política do BE eleitos por uma corrente minoritária com a alegação de que essa corrente também é crítica dos entendimentos parlamentares que têm dado suporte ao Governo.

Qual o objectivo que presidiu à celebração formal do acordo em Lisboa que confiou a Ricardo Robles o pelouro da Educação e dos Direitos Sociais ? Um acordo que não obrigou o PS a uma profunda alteração na sua gestão urbana de Lisboa, mas reservou ao vereador um campo de actuação que permitia chamar a si, e anunciar, a distribuição de apoios, como nos manuais escolares, e, como referia o Público de 31 de Julho de 2018, incluía a gestão do “Programa Renda Acessível em prédios públicos, que previa a disponibilização de 3000 fogos durante o mandato e que já lançou 250 apartamentos; ou a oferta de mais residências universitárias (400 camas por ano), de que já estão previstos mais 226 quartos.” E que Helena Roseta, relegada para a Assembleia Municipal, entende abranger mais áreas: Esperava até melhor do seu desempenho como vereador, com os pelouros da educação e dos direitos sociais. Esperava melhor na luta por causas que o notabilizaram na Assembleia Municipal, a começar pelo direito à saúde, que integrava o seu pelouro. O anterior vereador dos direitos sociais, João Afonso, deixou pronto o Plano Municipal de Saúde de Lisboa. Precisamos de definir de uma vez por todas o destino dos hospitais da colina de Santana e garantir a conclusão e entrada em funcionamento dos novos centros de saúde. Ricardo Robles não conseguiu desenvolver estes dossiers, talvez por falta de tempo, mas também porque não lhes terá dado a necessária prioridade.” Talvez o acordo prefigurasse um futuro acordo de incidência governativa em que o PS continuaria a tranquilizar os mercados e o BE geriria algumas pastas de direitos / apoios sociais (os paliativos aos efeitos do mercado). Robles, com um curriculum pessoal interessante, poderia vir a ser protagonista também aqui.

Se esse objectivo esteve subjacente, não admira que para a reunião da Comissão Política do BE que decidiu sobre o vereador que iria substituir Robles se tenha convidado não só a dirigente de uma cooperativa de habitação, em segundo lugar na lista, dando-a logo como caso duvidoso, inclusive junto da comunicação social, mas também um activista histórico, Manuel Grilo, colocado junto do Grupo Parlamentar, fazendo passar que por ser professor teria o perfil adequado para substituir Robles no pelouro da Educação. Grilo pode gerir com habilidade as responsabilidades de Robles e a relação política com o PS e de resto o peso dado à habitação na candidatura para a CML é agora um factor embaraçoso não só pelo faux pas do “Ken do Bloco” mas sobretudo porque o acordo com o PS não põe em causa o modelo de gestão urbana deste. A candidata Rita Silva grangeou votos que foram úteis para eleger Robles, mas estaria deslocada na vereação.

De qualquer forma, ouso dizer que o debate sobre o “direito à cidade” é redutor quando, por razões de delimitação eleitoral, não se equaciona a articulação entre  Lisboa e municípios limítrofes nem a integração no concelho de alguns núcleos urbanos que o complementam.

A culpa foi… do imobiliário

Conheço vagamente Medina, que lamento apareça agora relacionado com a tutti-frutti e com a libertinagem pelos vistos consensual na contratação de assessores. Veremos o que sai daí, mas o relativo flop eleitoral autárquico que sofreu terá tido possivelmente a ver com as notícias sobre o valor e localização do duplex que comprou…com a ajuda dos sogros…a gentrificação tem muitos caminhos.

Não conheço Ricardo Robles nem a concelhia do BE de Lisboa, que terá gerido desde 2005 no que se deve dizer ser um tour de force notável, uma vez que nesta parecem ter intervenção todos os grupos e subgrupos do Bloco. A representação na Assembleia Municipal merece ainda hoje elogios (e não ficou vinculada ao acordo para a Câmara). Em 2014 Robles teve um ano em cheio: nas eleições europeias os eurodeputados baixaram de 3 para 1 salvando-se, por mérito próprio, Marisa Marias, liderou uma lista que ganhou a maioria dos lugares da concelhia contra uma lista conotada com Ana Drago fazendo apelo contudo à integração da minoria no trabalho da comissão, apoiou a moção de Catarina Martins a uma Convenção que aquela ganhou por uma unha negra em número de votos, empatando a nível de delegados. Foi neste ano, parece, que montou a sua “operação imobiliária”. Renunciar como vereador percebe-se, atendendo à base em que fez a sua campanha eleitoral, sair da concelhia, se esta não estava a par da operação, será naturalmente um alívio.

Em ambos os casos foi o imobiliário o culpado. O imobiliário é, na política local portuguesa, um fetiche. Se fossem acções, toda a gente se estaria nas tintas.

Quando em 2001 se verificou o triunfo da coligação de direita, com Santana Lopes, sobre a coligação de esquerda, que recandidatava João Soares, verificou-se que a última deixou de existir por ter sido apenas constituída para assegurar o governo da cidade, não se mantendo na situação de oposição a convergência entre as forças que a integravam.
Pelo contrário, lembro-me de um artigo do arquitecto José Tudela, em que apresentava a proposta que, dizia, era  apoiada pelo então ministro Carmona Rodrigues, de criar uma saída da linha de Sintra na estação do Rato, aproveitando o atraso das obras de reparação do Túnel do Rossio, solução que essa sim, facilitaria a mobilidade. Claro que não avançou.
As instalações da Carris no Arco do Cego foram felizmente transformadas em jardim, mas já quanto à possibilidade de encerramento da estação de Santa Apolónia as campainhas, até por ter sido exteriorizada uma reacção favorável de Manuel Salgado, não deixaram de soar.
“ Os exemplos educativos de Robles e Costa”, ECO, 3 de Agosto de 2018.
“Vistos Gold, Economia e Imobiliário”, Jornal Tornado de 4 de Julho de 2018.
Tal não sucedeu ainda no caso do Metropolitano de Lisboa, em que apesar de ter sido extinta a empresa que assegurava a gestão conjunta com a Carris, a municipalização não foi decidida, sendo contudo as orientações estratégicas da empresa definidas de facto em consonância com a Câmara da capital.
“A grande desilusão”, Público de 6 de Agosto de 2018.
Fui viver para o Norte do Parque das Nações em 1999 e até 2013 não pude votar em Lisboa pois os grupos parlamentares do PS, PCP e BE nas Assembleias Municipais de Lisboa e Loures e nas Assembleias de Freguesia de Olivais e de Moscavide bloquearam a criação da Freguesia do Oriente e a integração do Norte do Parque das Nações em Lisboa.

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