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Quinta-feira, Abril 25, 2024

O Livro Em Branco I

José Carlos S. de Almeida
José Carlos S. de Almeida
Professor de Filosofia do ensino secundário. Licenciado em Filosofia e em Direito.

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Também Hareth iben Axraf possuía aquela virtude paciente e nocturna de fixar numa renda demorada e vida agitada de Yathrib, o comércio e o homens, as histórias fabulosas que as caravanas que atravessam o Hedjaz íam escrevendo e guardando no rosto vermelho dos homens do Levante e na areia fina do deserto, espécie de livro sem fim, posto por Deus à disposição dos homens, onde as rodas dos carros e as patas dos camelos inscrevem os vários passos da coisa humana, os seus actos, até que um dia, alguém, sobre o Hedjaz, os decifre, por virtudes de navegação aérea, riscos e sulcos na areia, escrita misteriosa, que o vento apagará e levará sabe-se lá para onde, talvez para junto de Deus, para que Ele os vá lendo com o tempo e possa, em ocasião ajustada, julgar os povos destes sítios.

Vinda a noite e a mansidão da Lua, acercava-se de Hareth iben Axraf a vontade de escrever tudo o que durante o dia ouvira, de descrever o entusiasmo com que escutara as narrativas fantásticas dos condutores das caravanas.

E deixava também registo dos seus medos e dos seus desejos de viajar. E então, à luz de um candeeiro, anotava num caderno, com uma caligrafia delicada, todas as impressões novas e os fragmentos sábios das gentes de Yathrib. Como numa longa pintura.

livro-branco-1Perdia-se, dessas vezes, Hareth iben Axraf no enredo das histórias que escrevia, vítima de maquinações fantásticas e perturbadoras, viajava nelas e na noite que lentamente o inundava quente, carícia meiga e silenciosa que só o rapaz sabia, por ter carne jovem e imaginação sem freio, e tudo se confundia, o que os homens lhe contaram e o que a noite segredava, e nem as letras separavam, antes, pois possuíam formas estranhas para dar corpo a tanta maravilha, uniam ali no papel, a noite, as viagens dos comerciantes e o longo Hedjaz. Era estranho aquele comércio das letras, sistema de trocas directas bem se vê, que sente quem escreve à noite.

E era à noite que Hareth iben Axraf escrevia.

Por vezes, cansado no meio de tanta escrevinhação, acordava-lhe o desejo súbito, pois os desejos sempre são súbitos, e é por serem desejos de nada, que são desejos e não caprichos, desejo agora da pele branca e perfumada de Séfora, sua amiga de olhar inexplicável, melhor maneira de traduzir o que os olhos dizem sempre a mais do que algum dia se poderá escrever.

Por isso, largou tudo em direcção à sua Séfora, e quem o visse então, exclamaria, Olhem, ali vai Hareth iben Axraf, quase correndo, quase voando, e fossem os braços antes asas, e ele voaria decerto sobre as casas brancas de Yathrib, fendendo o ar como daqui a pouco o corpo do seu desejo.

Mas os braços não eram asas e isso sabia-o bem Séfora que irá amar noite fora e sentir nos recantos do corpo as mãos de Hareth iben Axraf, como pássaros que se espantam no estilhaçar do dia.

livro-branco-4Ainda bem que os braços não são asas, murmurará Séfora, de olhar inexplicável, sentindo a algazarra infantil dos dedos do seu jovem amante desembaraçando o seu corpo das sedas e dos receios, menos estes que aquelas, nunca há mil e uma noites, o tempo é sempre pouco e pouco se fala, na sua boca apenas cabe outra boca, a de Séfora, cantos doces, de doces cantos ouviu um dia, parecem que se querem esconder um do outro, não por vergonha, mas por mágicas e difíceis acrobacias, quase satânicas, que isto do amor onde não entre o Mal, morre o desejo por ser desejado como peixe fora de água e definham os amantes em longas prédicas bem intencionadas.

Por isso Hareth iben Axraf corre pelas ruas de Yathrib, que hoje se chama Medina, mas nem ele pensou em tal coisa, não vá a noite adormecer Séfora e levá-la para muito longe.

As suas sandálias nem pisam o chão e nem repara nalguns vultos que se escondem aluados pelas ruelas simétricas de Yathrib. Quem é este jovem que assim corre, o mundo não acaba amanhã, mas quando o Livro quiser, isso é que acaba, se Hareth iben Axraf não encontrar ainda esta noite os olhos de Séfora, céu do mundo, por redondos serem e por lá morar o que é de sagrado e envia as chuvas benfazejas para todo o Hedjaz.

E nos olhos de Séfora também chove, aí o mundo não acaba, antes nasce, e isso só Hareth iben Axraf sabe. Mas tal saber nunca escreverá, porque a paixão não se escreve: sabe-se e é tudo.

livro-branco-2Quando chega, já Séfora de olhar inexplicável estava à janela e sorri e Hareth iben Axraf também sorriu. Trocavam agora de risos e dentro em pouco de braços e de carícias e de segredos e de perfumes. Ofegantes e espantados no silêncio.

Onde perco a boca, perguntará o jovem, vasculhando o quarto e o corpo de Séfora, de olhar inexplicável, ainda rindo, já não sabemos se por prazer recompensado ou de novo renovado. Quem saberá as cores das noites de Yathrib, as noites doces, terra de mel e leite, também, abençoada pelas Palavras e por Alá que encomenda a sua escrita, grande escritor por mister forçado na criação do Mundo.

Que Hareth iben Axraf vai escrevendo outro livro na pele lisa de Séfora, dirá esta mais tarde, olhando o seu corpo arranhado, comemoração escrita e luminosa, incendiando muitas noites e a memória.

Respirarão fundo, enfim, os jovens, que ele tinha corrido muito e ainda não descansara e assim é que está certo, porque no amor também se corre e quando se pára ou se acorda, nunca mais reconhecemos os mesmos lugares.

Só Séfora, meiga Séfora de olhar inexplicável, outra Lua, é ainda porto seguro, talvez Djedda imaginada e poderia aí Hareth iben Axraf dormir descansar dormir, Oh, inventa-me uma história, não digas nada.

E ficam calados, parece que toda a cidade repousa naquele momento, expectante. E ficam calados, dizia, e eu também não deveria perturbar o silêncio dos amantes, mas desta vez Séfora levantar-se-á, cisne branco orgulhoso que acorda a superfície do leito e irá buscar um presente que oferecerá ao rapaz, não como recompensa, que nisto do amor tudo é gratuito, por vias de graça divina e mandamento natural, mas por prazer malicioso, cuja razão não se deve perguntar, porque o que acontece tem de acontecer e é inútil inquirir razões.

Fica espantado Hareth iben Axraf com a oferenda, pois era um livro em branco, livro diferente por não se achar sequer iniciado com qualquer sinal que se lesse, livro que não é livro ou então único livro possível, branco no branco, e sorri Séfora, sua amiga de olhar inexplicável.

Um livro em branco é o que Séfora oferece a Hareth iben Axraf, jovem dado a estas coisas das letras e dos sinais, que nesse momento, ainda não recomposto, como que acorda.

Um livro onde tudo fique registado, até as marcas das noites em que não nos vimos, explica Séfora sem mais explicar e nada pergunta o rapaz que guarda o estranho presente. E explicado ficando e ninguém mais falará disso durante o resto da noite, se bem que, quando o jovem partir ou largar, é quase dia pois aqui amanhece mais cedo que noutras terras para lá do mar que nunca conhecerá, mas que ouvirão mais tarde esta história, irá cismando pela rua naquele livro.

livro-branco-5Abalado que foi da casa de Séfora, depressa regressará a casa, talvez querendo começar desde já a escrever naquele livro, forma clara de trazer presente a sua amiga de olhar inexplicável, adorná-la de riscos preciosos alvorecendo a seda da sua voz.

Mas porque já era tarde ou o escrevente se sentia ainda embalado naquela dormência, quem poderá saber se amar não é apenas uma forma de navegação alterada e solitária, que, chegado a casa, logo adormeceu, menino pequeno sem pecado, apenas com aquele que não é pecado por ter encomendado a sua alma ao olhar de Séfora e assim, desalmado ou de alma mais plena, se ter abrigado em tão curiosa hospedaria, não temendo o castigo que sempre resulta de quem pernoita clandestino e sem avisar os guardas da cidade.

Adormecido está, sonhando vai, e para tão longe que no outro dia nem se lembrará por onde passou, que terras viu, em que portos nunca vistos penetrou. De nada se lembrará porque, sozinho ou com Séfora, distante foi e outros lugares sentiu e descobriu, arte nómada e subversiva, e por isso não se recorda.

E assim ficam esclarecidas as razões dum problema que atormentará a mente humana muitos séculos depois.

 


Nota de edição

A segunda parte deste artigo – conto -, será publicada no próximo domingo, 27 de Novembro.

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