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João de Sousa

Domingo, Novembro 10, 2024

Manifesto SNS 2021

O Serviço Nacional de Saúde, que é património de todos, tem de ser cuidado

A Lei de Bases da Saúde deve passar do papel para a realidade

A Fundação para a Saúde – Serviço Nacional de Saúde (FSNS) acompanha atentamente a evolução do combate à pandemia e regista o inexcedível esforço realizado pelos profissionais do SNS, assim como a extraordinária capacidade de adaptação e de reorganização que as unidades públicas de saúde têm demonstrado.

Ficou, mais uma vez, confirmada a importância e a centralidade do SNS enquanto garante da saúde da população, de todos cuidando sem discriminar por condição clínica, social ou capacidade económica. A resiliência e a ampliação da capacidade assistencial neste contexto epidémico devem-se sobretudo às características constitutivas do SNS que advêm da sua natureza pública e solidária, sendo suportado por todos através dos seus impostos.

A gestão de pandemia exige medidas extraordinárias. Acumulam-se dificuldades decorrentes do cansaço, da duração prolongada, do necessário enfoque para conter o alastrar da doença na população e minimizar os danos nas situações mais graves e da atividade programada adiada. Por isso é necessário, mais do que nunca, assegurar o contínuo investimento no SNS, para que possa assegurar a sua missão: garantir a prestação de cuidados universais, gerais e tendencialmente gratuitos.

Ao mesmo tempo, a experiência da luta contra a pandemia trouxe oportunidades de evoluir da retórica sobre a “saúde em todas as políticas”  para a sua aplicação concreta por parte do Governo como um todo, dos seus ministérios e dos diversos sectores da vida social e económica do país. Não se trata apenas de uma estratégia intersectorial da promoção da saúde, mas de garantir que a saúde é integrada nas iniciativas políticas de outras áreas, as  quais devem ser coerentes com as prioridades das politicas de saúde e traduzirem-se também em ganhos em saúde para a população.

 

Cuidar do SNS é garantir o seu reforço e promover a sua transformação 

O reforço e a transformação do SNS devem ser orientados por um plano com prioridades, objetivos e cronograma precisos. Sugere-se que esse processo seja coordenado por uma estrutura de missão dependente do Governo e acompanhada diretamente pelo membro responsável pela saúde. Os pilares desse plano devem contemplar, em especial:

  • Integração e continuidade de cuidados centradas na pessoa

Garantir a integração e a continuidade de cuidados em função das necessidades de cada pessoa – em especial das pessoas com morbilidade múltipla e dependências, e desenvolver os cuidados continuados integrados entrosando-os mais estreitamente com os cuidados de saúde primários, os cuidados hospitalares e a rede social;

  • Valorizar os profissionais do SNS

Reconhecer e valorizar os profissionais do SNS através de um modelo mais dinâmico e atrativo de carreiras profissionais que permita captar e reter os melhores para se dedicarem ao serviço público com todo o seu entusiasmo e brio;

  • Assegurar os recursos financeiros e tecnológicos necessários

Assegurar os recursos necessários à satisfação das necessidades de toda a população, reduzindo desigualdades e monitorizando em cada ano os progressos de equidade (acesso, utilização e resultados), tendo em especial atenção:

  1. atingir e manter um financiamento consistente no SNS, acima da média da UE, evitando que os numerosos indicadores de saúde que têm estado, há anos, acima ou muito acima da média da UE, piorem no futuro, e permitindo também que outros menos favoráveis possam melhorar;
  2. retribuir de modo adequado e justo os profissionais de saúde do SNS – lançar um programa imediato com medidas motivadoras para retenção dos profissionais;
  3. garantir verbas para responder aos efeitos a médio prazo da pandemia nos cuidados e no funcionamento do SNS.
  • Reforçar o investimento no SNS

Delinear e executar um programa plurianual de investimentos orientado por prioridades estratégicas imediatas e de curto, médio e longo prazo. A prioridade imediata deve ser dada às componentes que promovem mais eficiência e sustentabilidade financeira, funcional e social do SNS. Isto é: promoção da saúde com envolvimento intersectorial; programas visando a literacia para a saúde; reforço das equipas de saúde pública; atividades preventivas com evidência científica demonstrada; cuidados de saúde primários fortes e redes integradas de cuidados de proximidade;

  • Formação dos dirigentes, a todos os níveis

É urgente desenvolver um sentido de coerência, coesão e uma cultura organizacional comum no SNS – através de um programa de formação avançada, em cascata, abrangendo todos os responsáveis por administração, direção e governação clínica, a todos os níveis.

 

A Lei de Bases da Saúde deve passar do papel para a realidade

A Lei de Bases da Saúde, aprovada há 453 dias, em 4 de setembro de 2019, determina no seu Artigo 2.º:  – O Governo adapta a legislação em vigor à Lei de Bases da Saúde e aprova a legislação complementar necessária.

Por isso, é tempo de dar cumprimento ao que a Lei determina. Sugerem-se como prioridades imediatas:

  1. Novo Estatuto para o Serviço Nacional

O estatuto do SNS, ainda em vigor, data de 1993. Decorreu das opções de fragilização do SNS plasmadas na Lei de Bases da Saúde de 1990. Está distante da situação e das necessidades atuais e em dissonância com a nova Lei de Bases da Saúde, de 2019.

Pontos de partida: Base 20 – n.ºs 1, 2 e 3; Base 22 – n.ºs 1 a 6; Base 23 – n.ºs 1 a 4.

  1. Investimento – Quadro estratégico e planos plurianuais

Investir no SNS, com critérios e prioridades inteligentes, é investir na saúde e bem-estar de toda a população. É reforçar os laços de solidariedade e de coesão social no todo nacional e contribuir para o desenvolvimento social e económico do país.

Pontos de partida: Base 4 – n.º 2, alínea j);  Base 23 – n.º 4.

  1. Profissões e profissionais de saúde

As pessoas (profissionais e cidadãos) podem considerar-se os principais fatores explicativos da resiliência do SNS ao longo de décadas, apesar do desinvestimento e das vicissitudes a que tem sido sujeito. No que respeita aos profissionais, são prioridades imediatas: reconhecer, acarinhar, valorizar e relançar a dedicação, o entusiasmo, o brio e a confiança dos profissionais. Tal implicará, a par de revalorizar e de inovar nas carreiras profissionais, incentivar e recompensar o trabalho em equipas interdisciplinares e interprofissionais.

A garantia do direito de acesso e de progressão nas carreiras profissionais devem ficar claramente alicerçados no mérito e nas provas dadas, e não na conveniência ou arbitrariedade das gestões institucionais ou na mera antiguidade. As carreiras profissionais e as vantagens e recompensas inerentes devem ser fator decisivo para a atratividade e retenção no SNS e a melhor forma de reconhecer e retribuir o valor dos contributos dos diferentes profissionais.

Pontos de partida: Base 28 – n.ºs 1 a 7; Base 29 – n.ºs 1 a 3; Base 30.

  1. Saúde de proximidade e sistemas locais de saúde

Uma das tarefas imediatas é a de melhorar a integração de cuidados ao longo do percurso de cada doente no SNS, alicerçada e a partir de uma boa rede de serviços de proximidade, com apoio de serviços e tecnologias adequadas, e esbater as separações entre saúde, proteção social e participação comunitária. Apesar de a Lei de Bases circunscrever o âmbito formal dos sistemas locais de saúde aos “serviços e estabelecimentos do SNS e demais instituições públicas com intervenção direta ou indireta na saúde”, é decisivo que este núcleo público estabeleça e desenvolva elos e pontes de interligação e cooperação com todas as organizações e atores relevantes para a saúde das pessoas, famílias e comunidade, em cada local.

Pontos de partida: Base 2 – alínea l; Base 3 – n.º 3;  Base 8 – n.ºs 1 e 2; Base 9; Base 12 – n.ºs 1 e 2; Base 13 – n.ºs 1, 2 e 3.

  1. Participação dos cidadãos, dos profissionais, das comunidades e controle social

A participação e o envolvimento dos cidadãos e das comunidades nos seus processos de saúde, mas também na gestão e no desenvolvimento adaptativo dos serviços do SNS é um fator chave para o futuro. Ajudará a melhorar a qualidade dos cuidados de saúde e a obter melhores resultados em saúde e bem-estar para cada um e para todos.

Por outro lado, haverá que desenvolver também a participação dos profissionais do SNS na melhoria da gestão, da governação clínica, da organização e dos processos nos seus serviços.

Ambos as vertentes mencionadas são estratégias poderosas de mobilização e ação social em defesa do SNS, que é património de todos, tendo a tecnologia e o desenvolvimento digital um papel fundamental neste âmbito.

Pontos de partida: Base 2 – alíneas i), j), k) ; Base 4 – n.º 2, alínea f); Base 5 – números 1 e 2; Base 20 – n.º 3.

  1. Reforçar e desenvolver o dispositivo de Saúde Pública e vigilância epidemiológica

A Saúde Pública foi protagonista decisiva para organizar a proteção da saúde da população nas décadas de 70 e 80 do século passado. Porém, foi sendo secundarizada nas prioridades políticas das décadas seguintes. A pandemia veio destapar a inadmissível situação a que se chegou. É necessário revertê-la e prepará-la para os desafios da saúde do futuro.

Pontos de partida: Base 10 –n.ºs 1 e 2; Base 34 – n.ºs 1 a 3.

  1. Sistemas e tecnologias de informação

É urgente assegurar a máxima interoperabilidade que for possível entre as múltiplas aplicações e plataformas em uso no SNS, de modo a facilitar o trabalho dos profissionais e a permitir apoiar, de facto, a integração de cuidados centrada na pessoa. São as tecnologias que têm de adaptar-se às necessidades das pessoas e dos profissionais e não o contrário, de modo a configurarem reais sistemas de apoio à decisão e gestão clínica.

Pontos de partida: Base 15 – n.ºs 1 e 2; Base 16 – n.ºs 1, 2 e 3.

  1. Contratualização

A contratualização permite evoluir do modelo hierárquico centralista de comando-controlo, para uma nova hierarquia que utiliza o compromisso, a responsabilização a avaliação, a comparabilidade e a transparência como poderosas ferramentas de governação em saúde. Para tal, deve focalizar-se no que verdadeiramente interessa para a saúde das pessoas e da população. Isto é, centrar-se primariamente na obtenção de mais saúde e concomitantemente na garantia do acesso e na satisfação adequada das necessidades dos utentes, visando sempre maximizar a integração entre as diferentes prestações de cuidados.

Pontos de partida: Base 4 – n.º 2, alínea c).

  1. Regulação

As palavras “regulação” e “regulamentação” são, por vezes, usadas como se fossem sinónimas. Porém, a regulamentação é apenas um dos instrumentos para a regulação do sistema de saúde e nem deve ser o dominante. Atualmente, a regulação de sistemas sociais complexos, abertos e adaptativos, como é o da saúde, apela para conhecimentos oriundos das ciências da vida, da ecologia, das ciências sociais e do conhecimento sobre os comportamentos humanos coletivos, regulação de interações com e entre grupos de interesses, entre outros.

Pontos de partida: Base 6 – números 1, 2 e 3; Base 19 – n.ºs 1 e 2.

  1. Planeamento estratégico

É absolutamente decisivo assegurar um planeamento estratégico expedito, que envolva e mobilize de modo contínuo uma ampla rede de atores e de protagonistas. Planeamento que recorra a objetivos e a estratégias claros e simples de comunicar à população e a todos os profissionais. E, simultaneamente, com componentes técnicas específicas adequadamente aprofundadas e alicerçadas no melhor conhecimento científico disponível. Para coordenar este processo estratégico conviria responsabilizar uma estrutura permanente do Ministério da Saúde que reúna as competências necessárias e garanta coerência e continuidade ao longo do tempo. Coordenação alicerçada, por sua vez, numa rede dinâmica, multinível e intersectorial estreitamente ligada aos pontos de decisão essenciais e críticos para a boa execução do plano.

Pontos de partida: Base 4 – n.º 1;  Base 4 – n.º 2, alíneas h), i), j); Base 32 – n.ºs 1 a 3; Base 37.

 

Nota final

A crise pandémica que vivemos torna imperativo o reforço do SNS, ao nível dos recursos humanos e materiais, e pode configurar uma oportunidade para o transformar, adequando-o às novas realidades presentes e futuras.

Os signatários deste Manifesto declaram a sua disponibilidade para colaborar no que for necessário e estiver ao seu alcance fazer para ajudar a concretizar as propostas e sugestões enunciadas. Convidam os cidadãos que o desejem a subscrevê-lo e a manifestar também a sua disponibilidade de ação naquilo que estiver ao seu alcance. Designadamente, nos processos de participação acima descritos e/ou no âmbito das suas competências profissionais.

Lisboa, 1 de dezembro de 2020

 

Constantino Sakellarides, J. Aranda da Silva, Víctor Ramos – Ex-presidentes e presidente da FSNS.

António Leuschner, Celeste Gonçalves, Diana Costa, Isabel Abreu, João Carlos Moreira da Silva, José Carlos Santos, Maria Augusta Sousa, Marta Salavisa, Patrícia Barbosa, Pedro Maciel Barbosa, Rute Teixeira Borrego, Teresa Gago – Membros do Conselho de Administração e colaboradores permanentes da FSNS.


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