Lisboa. Coliseu dos Recreios. 2 de Abril de 1989. Na penumbra da sala cheia instala-se um murmúrio crescente, à medida que a hora se aproxima. Pontualmente às nove e meia da noite, o palco enche-se de fumo e a música começa a fazer-se ouvir. Do nada surge uma figura colorida, um negro magro de longos cabelos, roupa extravagante e óculos enormes numa face esquelética de lábios grossos, inclinado sobre si próprio à medida que toca o trompete. A plateia rejubila quando o músico entra acompanhado pela sua banda. Miles Davis! Quem é este músico, venerado pela audiência mal sobe ao palco? Qual a sua mística na história do jazz?
Miles Davis constitui sozinho um capítulo à parte dentro do jazz. Rebelde, contraditório, distante, ele foi uma verdadeira força propulsora do jazz durante mais de quarenta anos. O som do seu trompete, puro, macio e quase sem vibrato, emitido muitas vezes em surdina, o seu fraseado concreto e despojado tornaram-se a sua assinatura. Fundador do cool jazz, do jazz modal, do jazz-rock e da fusão, Miles fez da renovação de linguagens o principal impulso da sua música.
Miles Dewey Davis Jr nasceu em Alton, Illinois, em 26 de maio de 1926, no seio de uma família razoavelmente abastada. Logo em 1927, os Davis mudaram-se para East St. Louis. Apesar de sua mãe, Cleota Mae, ter sido pianista de blues e manter o secreto desejo que o seu filho estudasse piano, a educação musical de Miles começou aos treze anos, quando a pai lhe ofereceu um trompete e o colocou a ter aulas com um trompetista local, Elwood Buchanan. Ao contrário do que era costume na época, Buchanan destacou a importância de tocar trompete sem vibrato, influenciando assim o timbre limpo de Miles ao longo da sua carreira.
A carreira musical de Miles começou cedo. Aos 16 anos já era membro de um círculo de músicos e tocava profissionalmente enquanto não estava na escola. Aos 17 passou um ano a tocar com os Blue Devils, de Eddie Randle. Em 1944 Miles toca várias semanas em St. Louis com o grupo de Billy Eckstine, que integrava Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Miles substituiu o terceiro trompetista do grupo, mas quando convidado a prosseguir a tournée, os pais insistiram para que prosseguisse os estudos.
Ainda em 1944 Miles mudou-se para Nova Iorque, tentando obter assim uma bolsa de estudos para a Juillard Scholl. No entanto, preferiu procurar o grupo de Charlie Parker, que conhecera em St. Louis. O ano de 1945 assistiu às suas primeiras gravações, com o cantor de blues “Rubberlegs” Williams e o sax tenor Herby Fields. Ainda no mesmo ano integrou o quinteto de Parker como membro não oficial, participando em algumas gravações iniciais do bebop.
A partir de 1948 Miles foi desenvolvendo a sua carreira a solo, ao mesmo tempo que participava num noneto que incluía também Gerry Mulligan e Lee Konitz e que actuava habitualmente no Royal Roost Club. Depois de assinarem com a Capitol Records foram lançados diversos singles, alguns com arranjos de Gil Evans. É desta altura o início da colaboração entre Miles Davis e Gil Evans, que perdurou por mais de vinte anos. Esta sequência de singles foi continuando até 1957, tendo estado na base do magistral “Birth of the Cool”. Entre 1950 e 1955 Miles gravou como líder para a Prestige e para a Blue Note. Os seus grupos incluíam participações de Sonny Rollins, Kenny Clarke, Art Blakey, Horace Silver, Thelonious Monk, Milt Jackson e Charles Mingus, entre outros. Esta fase culmina com a sua participação no Newport Jazz Festival de 1955, onde toca um solo lendário no tema “Round Midnight”, de Thelonious Monk.
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