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Quarta-feira, Abril 24, 2024

Ars moriendi e salmos penitenciais

Da página de Facebook de Carlos Matos Gomes retiramos este texto que consideramos ter a dignidade e a qualidade próprias das páginas de um jornal, por isso aqui o reproduzimos, com a devida vénia ao autor.

Na hora da exaltação de Belmiro de Azevedo

A morte do empresário da grande distribuição Belmiro de Azevedo está a transformar a comunicação social num vale de lágrimas. Segue-se, na escala dos assuntos do dia aos incêndios, à seca, ao Infarmed e à cena das rendas da EDP que os chineses recusaram pagar.

Antes que surja uma petição patrocinada pelo Continente de entrada de Belmiro de Azevedo no Panteão recordava uma prática antiga para dignificar a morte e os mortos. Chamava-se ars moriendi. Presumo que os tarefeiros e outros especialistas em economia, finanças e astronomia das redacções e dos balcões da comunicação social jamais tenham ouvido falar nesta prática, na arte de morrer, em latim, que consta de livros de devoção destinados ao preparo de cristãos para uma boa morte. O propósito era auxiliar a pessoa no leito da ida a escapar do inferno ou mesmo do purgatório através de uma penitência genuína.

Também fazia parte da arte de morrer a confissão dos pecados, assegurada através dos salmos confessionais ou penitenciais. É que, como afirmavam os doutores das igrejas cristãs, a “Justiça Divina é Majestosa e Implacável para com o pecador empedernido.” É justamente esta Divina Implacabilidade do Criador que vemos representada nos salmos das Sagradas Escrituras! “Se tiverdes em conta nossos pecados, Senhor, quem poderá subsistir diante de vós?” ou: “Vossa cólera nada poupou em minha carne, por causa de meu pecado nada há de intacto nos meus ossos”. Estes e alguns outros salmos demonstram a Inexorabilidade de Deus para com aqueles que não se arrependem dos seus delitos…

Era sobre estas questões que a comunicação social se devia debruçar neste momento da morte de Belmiro de Azevedo, em vez de lhe fazer panegíricos que, julgo, serão cunhas de pouco valor no momento da última sentença.

Sinceramente, não sei quais os actos heróicos, ou mesmo de bondade mediana terá praticado Belmiro de Azevedo. Acredito que os tenha acumulado, mas por respeito pela morte e pelo morto, os nossos antepassados, em vez de promoverem e exagerarem, como se faz actualmente com o marquetingue, as qualidades dos produtos, preferiam a humildade e o comedimento. Uma informação séria.

Os livros da Sabedoria e dos Salmos, em vez da publicidade, da arrogância do vendedor do mês, preferem o pedido de perdão antecipado, anunciam arrependimento pelas faltas cometidas, prometem contrição e sacrifício. São esses os salmos que a piedade cristã denominou como Penitenciais. O oposto do que as promoções da comunicação têm apresentado de Belmiro de Azevedo.

Eu não sei se o engenheiro Belmiro de Azevedo era religioso e se, neste caso, seria cristão ou católico, mas devia ser, certamente, prudente. Ora vemos que os seus salmistas, ao endeusarem-no em vida, insultam a Majestade Divina. Pela minha parte, que não conheci o engenheiro Belmiro de Azevedo, que nunca fui caixa de supermercado, nem lojista dos seus shoppings, que nunca tive de aturar os seus vendedores e os seus contratos leoninos, pagar as suas promoções, julgo que seria avisado e sinal de sabedoria não dar ouvido aos pregadores da sua glória terrena em Portugal e na Holanda, por exemplo. Admitir alguns dos seus pecados, garantir que se teria arrependido das más acções, implorar indulgência para com os seus delitos, enfim, julgo que alguma humildade seria bem-vinda em nome da arte de morrer e até do respeito para com o morto.

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