Diário
Director

Independente
João de Sousa

Quarta-feira, Outubro 16, 2024

O pão e o queijo

Rui Miguel Duarte
Rui Miguel Duarte
Filólogo; investigador do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Essa entidade chamada povo, no sentido sociológico do termo (isento, portanto, da acepção de etnia, cultura ou civilização), condensa o que se convencionou designar sabedoria popular em ditos, provérbios, expressões. A vivência empírica dos relacionamentos, do trabalho, em suma, da vida e do mundo nas suas diversas facetas, gera esse caldo de senso comum que é a massa de que são feitos conhecimentos e princípios. Provérbios, ditados, expressões idiomáticas, frases feitas são a expressão ­ primeiramente em conceito, depois pela palavra, pelo verbo ­, das opiniões e de ideias correntes que superaram a prova da experiência e do tempo.

O verbete sobre o pão na versão francesa (pain) da Wikipédia ­ essa novel enciclopédia universal da sabedoria popular e alguma ciência , lista trinta expressões cujo tema é o pão. O papel que desempenha é o de símbolo. Aliás, a linguagem dos provérbios, ditos e expressões é costumeiramente trópica: é símbolo, metáfora, metonímia. Por exemplo, quando se diz em casa de ferreiro espeto de pau, não há que entender literalmente como referência a essa velha actividade já extinta: a da oficina metalúrgica artesanal. Não se está a falar de espetos propriamente ditos nem de espetadores (não os confunda o leitor com espectadores, que de dois verbos derivam e portanto dois distintos agentes designam). A frase significa outra coisa. Há que ler a ideia por trás da roupagem das palavras.

Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que vem da boca de Deus

Uma das mais conhecidas declarações de Deus ao seu povo, no livro bíblico de Deuteronómio 8.3, e que Jesus cita na tentação no deserto (Evangelho segundo Mateus 4.4; Lucas 4.4), é esta. Voltaremos a este dito noutro capítulo.

Pão pão, queijo queijo

O Sermão do Monte, ou das Bem-Aventuranças, transcrito no Evangelho segundo Mateus 5 e seguintes, é uma peça de ensino magistral ministrada por Jesus sobre a conduta a observar pelos seus discípulos; não é uma lição de teologia, mas uma síntese do estilo de vida cristão. A substância e essência é de singeleza de coração, misericórdia e paz. A coroa é a felicidade, ou bem-aventurança (makaria) do ser e não do parecer. E muito menos do ter. O triunfo é no íntimo, no carácter, no coração (kardia) transformados, não na glória conforme aos padrões correntes do mundo e dos homens. No versículo 37, lêem-se as seguintes palavras de Jesus: “Seja o vosso discurso sim sim, não não.”

Por meio delas, o Mestre da Galileia ensina os seus discípulos a serem pessoas de uma só palavra e fiéis a ela. Que o sim seja um sim, e todo o não um não. O problema não está no sim nem no não, em si mesmos, mas no sim de forma que é não ou outra coisa no conteúdo, ou no não que o é na pele mas que é sim na polpa. Não há lugar para meias-tintas e nims. O que dizem as palavras seja o mesmo que o coração enseja. Assim se explica a duplicação: que uma coisa seja taxativa, peremptória e plena.

Pão pão, queijo queijo são palavras com alguma semelhança no que transmitem de intenções, traços de carácter e atitude de vida. Quem diz “Eu cá sou pão pão, queijo queijo” pretende significar que gosta de separar as águas, deixar as coisas claras, sem subterfúgios, ser taxativo nas palavras e nos actos. O pão e o queijo não se opõem como o sim e o não. Pelo contrário, um tem o outro como companheiro privilegiado. Mas uma coisa não é a outra, não se confundem, cada uma é só aquilo que é e não a outra. Esta noção é expressa pela repetição tautológica dos termos. Dizer pão pão, queijo queijo, porém, não é de todo semelhante ao conselho de Jesus. Nesta expressão há como que uma imposição do que se é, um levar tudo e todos à frente, e aguente quem tiver de aguentar! Na mensagem do doce Rabi da Galileia há, por contraste, apenas a afirmação do ser em coerência; esta não se impõe, não corta cerce custe o que custar, apenas é, sem necessidade de auto-afirmação que vá para além disto mesmo. A coerência, a constância de carácter, a integridade, princípios e valores encontram a sua necessária correlação nas condutas e na linguagem; coração, actos e palavras concordam em perfeita harmonia. Uma pessoa dessas é de confiança; sabe-se o que se pode esperar dela, sabe-se o que ela é, que aquilo que faz e como o faz e que aquilo que diz e como o diz expressam exemplarmente o que ela é. Quer diga sim, quer diga não.

Não ter nem uma côdea de pão para comer

Escrevi na introdução que acho sinceramente que quem gosta de pão branco tem um gene regressivo. À falta de outro, de outra raça mais morena, mais de cor, até passa.

Porém, o que menos posso entender é que se não goste de côdea de pão. Impossível de entender. Conheço gente que tira a côdea ao pão. Ou que compra pão fatiado sem côdea, consumindo-lhe apenas o miolo. Tenho gente dessa em casa. Eu, todavia, em miúdo pegava nos casqueiros comprados pela minha avó e roía-lhes a côdea. Ouvir os estalos da crosta a partir na mão e logo a seguir nos dentes era a quintessência do sublime. Aos sábados antes do almoço, então, era um ritual. A minha avó, ao apanhar o neto nesses bárbaros hábitos, exigia que usasse uma faca. Mas, quando à côdea, já o neto a consumira, vorazmente.

A côdea é o melhor do pão. Em meu entender e segundo a minha experiência, claro. Mas tenho a absoluta certeza de que quem não gosta de côdea não apenas tem um gene regressivo, faz parte de uma sub-espécie. Sofre de uma doença incurável, a SIPA: síndroma da imuno-panificiência adquirida! O provérbio não ter uma côdea de pão para comer, como se fosse coisa desprezível, só pode ter sido forjado em noite de bebedeira ou de acesso de loucura!

Bem, se não quiserdes a côdea, guardai-a para mim. Venha ela de lá, bem estaladiça, ruidosamente crocante, bem morena e tostada e ainda a abrasar do forno!

O pão que o diabo amassou

Nesta expressão, o pão representa mais do que o alimento ou os recursos da vida: bens, dinheiro, casa, etc. Representa a própria vida no seu todo e o homem, cada um e todos, na vida. O pão amassa-se. Amassar conota sofrimento, dor.

O diabo, o velho inimigo de Deus e dos homens, o anjo caído, senhor do mal e tentador, entidade verdadeira ou simples personificação do lado obscuro dos homens? Não importa aqui. Na máxima popular, é o sujeito activo do amassar. Nós, homens, somos os sujeitos passivos. Pão amassado pelo diabo traduz a ideia de uma vida dura e farta, não do pão da prosperidade, mas do do sacrifício e da dor.

Tirar o pão da boca

Esta expressão pode ter duas acepções, em função do contexto em que é usada. Opostas.

A acepção benigna é a do sacrifício de um progenitor (normalmente, refere-se uma mãe), que tira o pão da sua própria boca para o dar a um filho. Há mães aves em cujos bicos abertos as crias procuram o alimento. Na míngua de recursos, uma leoa deixa antes os leõezinhos morrer, sobrevivendo ela. Na economia da sobrevivência, o animal adulto tem mais hipóteses de vir a ter outras ninhadas, renovando assim a esperança, do que crias tenras e inexperientes em caso de morte dos progenitores. A ética humana, porém, é outra: o adulto sacrifica-se pelos filhos.

Outro sentido é, por assim dizer, maligno. Tirar o pão da boca é retirar um bem, um prazer, a expectativa de uma vitória iminente a outrem. Por exemplo, nas eleições legislativas de 2015 resultou, a força política mais votada foi a coligação “Portugal à Frente” (PSD com CDS). Mas, o Governo dela formada caiu na Assembleia da República; então, em virtude de acordos de incidência parlamentar com Bloco de Esquerda (BE), PCP e PEV, o PS acabou por formar Governo. Pela primeira vez, uma solução governativa emanava do Parlamento e não – como era habitual – do partido ou coligação mais votado em eleições, do qual nenhuma solução estável resultou. Pela primeira vez em Portugal, entenda-se, pois não era inédita noutros países europeus. Absolutamente, foi tirado o pão da boca (o que quer dizer, o poder) a quem o detivera e se considerava no direito de continuar a detê-lo, direito esse sancionado nas eleições. As reacções decorrentes foram objectivamente acrimoniosas. Ficar sem pão suscita o mais animal que há em nós.

Outros dois exemplos, do mundo futebolístico. O primeiro: a 11 de Maio de 2013, no Estádio do Dragão, no Porto, teve assento uma partida decisiva da Primeira Liga portuguesa, entre o Futebol Clube do Porto e Sport Lisboa e Benfica. A este último bastava um empate para se sagrar matematicamente campeão. Treinado por Jorge Jesus, jogou um tanto conformado com o empate a 1-1. Um dos axiomas empíricos do futebol é que quem joga para o empate arrisca-se a perder. Aos 91 minutos, o brasileiro Kelvin marca o 2.º golo da equipa anfitriã. Consequências: derrota para o Benfica e título para o Porto, consagrado campeão na jornada seguinte, a última; e a famosa e mediática cena de Jorge Jesus cair de joelhos. Tirado foi o pão da boca.

Segundo exemplo: no mesmo estádio, a 6 de Novembro de 2016, partida entre as mesmas equipas. Desta feita, o Benfica lidera a classificação com avanço de 5 pontos. É do interesse do Porto ganhar, de modo a reduzir a diferença. E entra com vontade, desempenhando bem a primeira metade do jogo. Mas golos só surgiram na segunda parte, primeiramente para a equipa da casa. Os visitantes começaram a reagir melhor e acabaram por empatar, graças a Lisandro López, aos 92 minutos. Tirado foi o pão da boca aos adeptos do Porto.

Falávamos acima de animais e seres humanos. A este propósito, vem à memória o célebre passo do Evangelho Segundo Marcos 7.24-30 da mulher com uma filha possessa que busca socorro e a quem Jesus começa por dar uma resposta que consideraríamos estranha. A nacionalidade dessa mulher era cananeia (assim a identifica o paralelo Mateus 15.21-28) ou Ἑλληνίς, Συροφοινίκισσα τῷ γένει (“Grega, de nacionalidade ou etnia siro-fenícia”), segundo Marcos. Canaã era a designação dada pelos Hebreus ao território que compreendia o velho Israel (posteriormente dividido nos reinos irmãos e rivais de Israel e Judá), a Cisjordânia, a faixa de Gaza e os países a norte (Síria e Fenícia) e a Oriente, até ao deserto. A fixação dos Israelitas nesse território, com todas as consequências rituais religiosas e políticas dela procedentes, levou a mudanças semânticas. Assim, o termo passou a identificar povos e regiões de apenas parte desse território inicial, nas franjas de Israel e da Judeia; povos que, ainda que semitas maioritariamente de matriz semita, eram exógenos à ascendência judaica, estrangeiros em relação ao factor centrípeto da religião. A identificação da origem desta mulher é clara: o episódio ocorre na região de Tiro e Sídon, cidades no litoral e importantes portos fenícios, no território actualmente correspondente ao Líbano meridional (logo, nas fronteiras setentrionais de Israel). Para o autor e primeiros leitores, os do seu tempo, Síria parece dever ser entendido em sentido amplo como designativo de uma área vasta, que ia do litoral, a Fenícia propriamente dita, até às regiões interiores e desérticas, onde se situavam cidades importantes como Damasco.

A identificação da mulher, porém, não se fica por aqui: ela é, em primeira instância, dita Grega. Uma amálgama, uma mescla de etnias na mesma pessoa? Os Gregos eram étnica e linguisticamente indo-europeus. O conceito de Heleno (Grego), todavia, conheceu uma inflexão e um enriquecimento radicais, a partir do século IV a.C.. O orador ateniense Isócrates, no Panegírico de Atenas, escreveu que Grego é todo aquele que partilha a cultura, cultos e valores dos Gregos. Nisto residiria uma das razões da superioridade moral de Atenas em relação aos seus adversários Helenos. Este primeiro cosmopolitismo (ou, para usar um termo dos nossos dias, globalização) foi efectivamente de matriz grega. Em consequência dele, uma miríade de povos, de geografias e matrizes culturais e linguísticas díspares, passou a falar e pensar em grego e a praticar os cultos gregos, ou pelo menos a dar vestimentas gregas aos seus cultos étnicos, entrando estes no conjunto de cultos admitidos pelos Gregos. É o que se designa habitualmente por assimilação. Esta revolução (que não foi totalmente pacífica nem isenta de choque, tensões e guerras, em especial, e precisamente, em Israel) concretizou-se no império de Alexandre e seus sucessores – eles próprios Macedónios, indo-europeus não-Gregos, mas helenizados. Para um Israelita, Grego era não um Grego propriamente dito, isto é, um Heleno étnico, mas, por metonímia, alguém desse mundo helenístico, cultural e religiosamente outro. Um estrangeiro, portanto, um gentio, estranho e exterior à ancestral aliança hebraica com Deus. É provável que o sentido do termo, na identificação desta mulher, seja este, o de uma mera estrangeira em relação à nação judaica.

Ora, o que tem tudo isto a ver com animais e, acima de tudo, com pão? Reza o texto que ao pedido de socorro da mulher, Jesus respondeu (versículo 27): “Deixa primeiro que os filhos fiquem satisfeitos. Não está certo pegar no pão dos filhos e lançá-lo aos cãezinhos.” É uma daquelas atitudes de Jesus que escapam à compreensão. O Mestre da doçura, do amor, do acolhimento dos necessitados, profere o que parece ser um insulto. Aos ouvidos do público de hoje, assim parece: comparar pessoas a cães, ao leitor da era actual, em que os animais domésticos têm um respeito e uma dignidade, sancionados pela própria lei, não deixa de chocar, ou pelo menos de surpreender. “Abaixo de cão” diz-se hoje de um tratamento de um ser humano que fica aquém do mínimo da dignidade devida a um tal ser. Jesus não trata a mulher “abaixo de cão” bem ao nível de um desses animais, o tratamento fica-se no plano do discurso, das palavras. E podendo as palavras ferir tanto ou mais que actos, estas soam como insulto tanto pessoal como colectivo: pessoal à mulher e colectivo à nação que ela representa. Mais, a mulher era, como vimos, estrangeira, não-judia, e para estes os Judeus reservavam um epíteto pouco afectuoso. Não eram apenas Gregos (Hellenes), gentios (ethna), termos que, nos menos anódinos dos seus usos, não são mais do que designações, por assim dizer, técnicas, designativos de entidades e realidades étnicas, religiosas e culturais outras. Esses outros povos eram, para os Judeus, cães, com tudo o que isso possa ter de pejorativo e mesmo de segregacionista. Jesus profere um insulto xenófobo? Poder-se-ia aduzir aqui um esboço de aproximação: afirmações nos Evangelhos de que o destinatário de Jesus era o povo judeu. Ele era, afinal, o prometido na aliança com essa nação. Confira-se João 1.11 ou Mateus 18.11 (= Lucas 19.10). Ainda que noutras ocasiões o mesmo Jesus tenha afirmado que, face à dureza de coração e rebeldia do judaísmo religioso, o Reino de Deus (ou dos Céus) seria dado a outros povos. A alguém como esta mulher, talvez.

Surpreendente, e mesmo quem crê nele como Filho de Deus, santo e totalmente bom, não tem resposta definitiva. Tem-se procurado dourar a pílula, romantizar textos que por vezes interpelam inapelavelmente com a sua crueza o mais bem-intencionado leitor. Este passo não é excepção: dele se tem dito que Jesus desafiava a mulher à fé. Porém, não temos respostas, mas só o que à superfície lemos, e é neste plano que olhamos agora para ele: Jesus alude a essa segregação que os Judeus faziam dos outros, os povos sem aliança, sem Deus, em relação a si próprios. Os Canaanitas eram adoradores de Baal, o deus mais popular do panteão dessa região, portanto especialmente desprezíveis a olhos de Judeus. Estes eram os filhos, os outros meros cães. E em casa os filhos são sempre mais do que pets. Aqueles comem à mesa, e comem o pão; estes comem aos pés as migalhas que se lhes deitam. Outra possibilidade, mais subtil, possível em face do que o texto diz e não diz: Jesus poderia estar a perceber o íntimo dessa mulher e a auto-imagem a que dera ela guarida no seu subconsciente, absorvida precisamente, por um mecanismo especular, do convívio com Judeus. Naturalmente que a mulher entendeu a mensagem, não se deixou vergar pelo aparente insulto ou alusão discriminatória e declarou que migalhas de pão bastariam para satisfazer a sua necessidade. E esta fé foi elogiada por Jesus. Assim, a ser verdadeira a hipótese (e nada diz que o não seja) de que Jesus não insultava nem se posicionava como um comum judeu, mas que tentava levar a interlocutora a vencer essa auto-imagem de indignidade que ela teria em relação aos vizinhos judeus, certo é que a prova foi superada. Mas este acto de Jesus e a sua aparência de xenofobia… O mesmo Jesus que tratou a mulher samaritana, resultado da “contaminação” de sete séculos de Israelitas com Fenícios e Assírios, com maior desvelo. A surpresa e a aporia perduram.

Bem, resta que não é preciso tirar o pão da boca de uns para alimentar outros; há um quinhão para todos. Há quem coma muito e há quem se sacie de migalhas.

Fulano é um pão

Comer, entre outras acepções e usos, é uma metáfora de sedução e posse sexual. Nas bocas másculas, ouve-se a comparação de uma mulher atraente e desejável ao milho. Que é um cereal de que se fazem pipocas, convertidas em acompanhante de uma sessão de cinema, e a deliciosa broa.

Quando um homem deseja uma mulher, proclama: “comia-te toda”. Uns seios atraentes são “melões”. E, procurando ainda dentro do vasto repertório disponível na roda dos alimentos, logo vão à fatia das proteínas: “Ó faneca!”, “Bela fêvera!”. Mesma substância, diferentes hipóstases: de outros animais ao humano. E claro, como o milho, a faneca e as fêveras, comem-se. Ou devoram-se.

Mas o desejo sexual, o piropo e a sedução não são uni-direccionais do homem para a mulher. Não neste século, nem já no transacto. Pode ser politicamente incorrecto dizê-lo, mas é a verdade. Ora, dizer que um certo indivíduo é um pão, quem o diz são as mulheres, e dizem-no a respeito dos homens. Não faltarão por certo explicações para isto, que radiquem num inconsciente colectivo da espécie e dos tempos pretéritos da passagem do Paleolítico, das eras dos caçadores-recolectores para o Neolítico, a nova era em que a agricultura tomou a primazia entre as formas de a espécie humana obter a sua alimentação. Dir-se-á que os homens é que iam principalmente à pesca e à caça (ainda assim é em sociedades “primitivas”) e as mulheres se ocupavam mais das tarefas ligadas à nova actividade. Adiante. Como quer que seja, a fome e a vontade de comer calham a todos. Pois, se entre os cavalheiros abundam os trolhas, entre as damas sobejam as sopeiras…

Mas, afinal, o que vai melhor com uma faneca ou uma fêvera do que um pão?

Em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão

O pão como metonímia, como metáfora do alimento, da provisão, da riqueza e prosperidade faz aparição de forma eloquente neste célebre e corrente anexim. É costume ouvir-se que dinheiro não traz felicidade. Mas, quem não sabe empiricamente que a falta de provisão pode ser motivo de zanga? Quem não discutiu ou assistiu a discussões motivadas pela falta de dinheiro? A falta de recursos para pagar contas suscita o que de mais basicamente animal há nos homens: o instinto de sobrevivência. Este quebra a solidariedade e acentua o sentido de justiça própria. Quando sobra mês ao fim do salário, nasce a tensão, esta insemina a discórdia e esta última dá à luz desavenças. O marido queixa-se de recair sobre ele a maior parte do esforço de sustento da casa, a mulher critica certas decisões do marido e os filhos reclamam por só comerem frango e enlatados – ainda se ao menos fossem hambúrgueres do MacDonalds todos os dias! – e por não terem no Natal as prendas que esperavam. E o pior de tudo é que, como reza o ditado, não é o caso de todos terem razão. Fosse assim, a situação seria fatalmente de impasse. O pior é mesmo – assevera o provérbio – que ninguém tem razão. E isto torna a situação ainda mais dramática e sem resolução aparente.

Portanto, permita-se-me pessoal e discretamente discordar: dinheiro pode ajudar à felicidade, sim. Ter o necessário para viver dignamente, pagar as contas com tranquilidade e dispor de quanto baste para mantimento próprio e da família é profiláctico, previne focos de tensão e contenda. Viver assim é mais fácil – quem o negará? Havendo pão, todos podem comer dele um pouco; não havendo, disputam o pouco ou o nada que não há.

A pão e água

Esta expressão conota a acepção de pão como metonímia de alimento, e água como metonímia de bebida. Sendo os elementos mais básicos da alimentação, representam o todo. Estar a pão e água é não ter para alimento mais do que escassos recursos, é viver na penúria e aquém do remedeio.

A metonímia não o é, porém, totalmente. A expressão aponta situações reais: o tipo de refeições minimalistas servidas em prisões. Pão duro e bolorento, sem dúvida, pois em tempos e lugares em que os direitos humanos não eram ou não são honrados, a mais não se concede o direito aos renegados e ao que se considera a escória das sociedades.

O pão nosso de cada dia

Esta expressão encontra-se na célebre oração “Pai Nosso”, que todos, os quase todos, aprendemos de cor. Contém uma história e teve uma tal fortuna no património de memórias de da civilização mediterrânico-ocidental que merecer um capítulo à parte. Encontrar-nos-emos lá.

 

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

- Publicidade -