Recentes notícias sobre as conclusões de uma auditoria do Tribunal de Contas e a distribuição de prémios aos gestores de um banco – o Novo Banco que continua a acumular prejuízos, requerendo a injecção de dinheiros públicos – e a natural polémica que regularmente envolve esta prática, justificam uma releitura sobre a crise financeira de 2007. Não porque esta tenha resultado daquela prática, mas porque muito do que esteve na sua génese a ela se liga, começando pela ética associada à ideia de premiar especialmente o sucesso, expresso nos resultados de curto prazo, e concluindo na liberalização das sociedades actuais.
A natureza duvidosa da actuação dos banqueiros é reconhecida há muitos anos e a crise sistémica de 2007 não foi a primeira falha catastrófica do sistema financeiro, pois já em 1929, o mundo tinha passado pela Grande Depressão e assistido à falência de centenas de bancos. O paralelismo entre estas duas grandes crises fica mais evidente quando se constata que estas ocorreram em períodos em que os bancos e demais agentes financeiros beneficiaram de crescente liberdade para manipular o sistema em seu próprio benefício.
Constatados os desastrosos resultados económicos e sociais da crise de 1929, no seu rescaldo, foi decidido pela administração de Franklin Roosevelt proceder a uma completa separação entre os diferentes tipos de bancos. A chamada lei Glass-Steagal impunha uma rígida separação entre os diferentes tipos de bancos, com os bancos comerciais (aqueles que captam depósitos e realizam empréstimos a empresas e famílias) a serem separados dos bancos de investimento, os que se concentram em aplicações nas bolsas de valores e não podem receber depósitos. Esta solução funcionou bem e sustentou um sistema financeiro estável durante décadas, até se terem generalizado as teses monetaristas e neoliberais que gradualmente fizeram desaparecer essas salvaguardas; com a ideia da abolição do papel regulador dos estados e de que o sistema financeiro era capaz de se auto-regular as crises financeiras começaram a suceder-se, tornando-se muito mais comuns em todo o mundo.
Com a evidência dos malefícios resultantes da desregulação da actividade financeira que precedeu a crise sistémica de 2007, criou-se a expectativa na reintrodução de nova e mais restritiva regulamentação; algumas soluções foram apresentadas, mas na prática, nenhum dos grandes problemas foi efectivamente corrigido, deixando a situação ainda pior. Continuamos com um sistema que incentiva os bancos a assumirem ainda maiores riscos, pois as conjunturas favoráveis asseguram-lhes os maiores lucros e, nas conjunturas adversas ou desfavoráveis, permite-se a transferência dos prejuízos para os contribuintes.
Outro factor determinante na formação das condições para a eclosão das crises, logo depois da desregulamentação, foi a generalização da atribuição de prémios de gestão (inicialmente justificados pelos resultados anuais, mas rapidamente transformados numa espécie de obrigação que cumpre a única função de assegurar o aumento dos benefícios de um número restrito de poderosos) para recompensar os responsáveis pelas estratégias mais arriscadas e pelos produtos financeiros de alto risco desenvolvidos por um sector financeiro que há muito abandonou a propagandeada função de financiamento das necessidades de investimento das economias para se concentrar em operações improdutivas.
Estes prémios de gestão incluem muitas vezes pacotes de acções do próprio banco, factor que aumenta ainda mais o “interesse” na obtenção de grandes resultados e na sua valorização em bolsa, ou de empresas accionistas do banco, situação em que acresce um potencial conflito de interesses entre os gestores e os accionistas. Os crescentes conflitos de interesses são mais um sinal da degradação dos valores éticos no sector financeiro, a ponto de já nem parecer estranha a notícia que o administrador do escaqueirado BES – grande sorvedor de fundos públicos (notícias recentes dão conta de novas “necessidades” entre 90 a 150 milhões de euros) agora pomposamente conhecido como Novo Banco – partilha essa situação com a de accionista de uma holding que detém 75% do capital do banco que dirige e que o presidente desta holding assessorou o Banco de Portugal naquele negócio, então na qualidade de assessor do Deutsche Bank, ou seja, foi assessor financeiro do vendedor e hoje é administrador do comprador… mas tudo normal, transparente e perfeitamente ético, à luz dos novos tempos.
Num sector onde impera um claro facilitismo (os exemplos descritos são uma perfeita gota de água num oceano), os prémios de gestão depressa se “democratizaram” e descendo a pirâmide hierárquica converteram-se em prémios por objectivos que ampliaram os malefícios dos primeiros ao gerarem um efeito devastador ao nível da grande massa de clientes incautos e desconhecedores das mais elementares regras prudenciais. A solução encontrada pelos reguladores (bancos centrais) foram normas obrigando os bancos a obterem dos clientes documentos que os exonerassem de qualquer responsabilidade e ainda a possibilitarem-lhes a transferência das responsabilidades para todo e qualquer empregado bancário convertido num “especialista financeiro”.
Não deixa de ser curioso que os prémios de gestão que recompensam os grandes lucros dos bancos sejam afinal um claro reconhecimento do funcionamento enviesado de um sector que, caso estivesse a funcionar adequadamente, deveria apresentar apenas os lucros derivados da sua intermediação entre as remunerações dos depósitos e dos empréstimos e não a da especulação financeira.
Vimos comos as crises financeiras desencadearam recessões em muitos países e como, em resposta e na boa linha de dominante pensamento neoliberal, os respectivos governos implementaram “medidas de austeridade” (eufemismo que se traduziu em grandes diminuições na despesa pública, e em especial em áreas como a saúde, a educação e a segurança social), quando em simultâneo se assistiu ao aumento da concentração da riqueza. Anos volvidos sobre o colapso que devia ter mudado as nossas vidas continuamos a assistir à actuação desregulada e desregrada dum sistema financeiro desligado da realidade económica global, onde se continua a permitir a transacção de contractos derivados que ultrapassam várias vezes o valor e o montante dos activos reais subjacentes, onde se permite a amálgama entre a actividade comercial e a especulativa e onde os grandes quadros continuam a usufruir de escandalosas compensações pelos resultados imediatos e inúmeras vezes inflacionados por meras manobras contabilísticas.
Pese embora a preponderância das teses neoliberais a reestruturação do sector bancário segundo regras semelhantes às que foram introduzidas após a Grande Depressão, não é difícil; poderá faltar vontade política, mas a necessidade existe e o perigo de não a executar é grande e bem real.
Ver: “O paradigma dos Prémios de Gestão” – Parte I