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Segunda-feira, Maio 5, 2025

O que representam as eleições americanas

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

Os acontecimentos do passado dia 6, que culminaram com a invasão do edifício do Capitólio, por apoiantes de Donald Trump, quando decorria a sessão de confirmação dos resultados das eleições presidenciais norte-americanas, enchem ainda a comunicação social e ocupam a miríade de comentadores (nacionais e estrangeiros) que habitualmente acompanham, ou nem por isso, a realidade política por terras do Tio Sam.

Quase todos manifestam o seu espanto e horror pela dessacralização daquele santuário da democracia, lançam críticas, mais ou menos duras, à actuação de Donald Trump, o presidente cessante, pela insistência na denúncia de uma fraude eleitoral, que os tribunais não reconhecem, com qual tenta justificar a sua derrota e pela incitação dos seus apoiantes mais extremistas a uma contestação popular que terminou como vimos. Faz-se uma ou outra comparação crítica da actuação policial, relativamente a outras grandes concentrações de massas, como foi o caso mais recente do movimento Black Lives Matter (movimento activista internacional, iniciado pela comunidade afro-americana, que luta contra a violência direccionada àquela comunidade), aponta-se a responsabilidade ao populismo que se espalha pelo mundo mas esquece-se, invariavelmente, de olhar para as características intrínsecas dos sistemas político e eleitoral norte-americanos.

Trago aqui, como contributo para esse debate, um texto que escrevi em de Fevereiro de 2008, período em que se iniciava o processo eleitoral que culminaria com a eleição de Barack Obama para o seu primeiro mandato:

Quando diariamente jornais e televisões nos “oferecem” notícias, sondagens, comentários e análises sobre as eleições americanas e a posição dos principais candidatos, não é seguramente displicente dedicar algum tempo a perceber o que por lá se passa.

Fortes nos seus mais de 300 milhões de habitantes, distribuídos por quase 10 milhões de km2 de superfície e dos seus biliões de dólares de PIB, os EUA apresentam ainda uma outra característica particularmente interessante e merecedora de atenção – o sistema eleitoral.

Classificada entre as nações democráticas, os EUA primam por manter um sistema eleitoral que além de particularmente complexo e prolongado no tempo apresenta como expoente máximo o facto do poder executivo – presidente – não ser eleito pelo voto directo dos seus cidadãos.

Mesmo quando decorre a fase em que os dois partidos – desde a sua fundação no início do último quartel do século XVIII que a política norte-americana se tem desenrolado num sistema bipartidário – procedem à escolha do seu candidato presidencial à eleição que tem lugar no mês de Novembro, no que habitualmente é designado por eleições primárias (uma eleição primária é aquela em que os eleitores escolhem um candidato para o processo eleitoral seguinte e, ao contrário da Europa onde os partidos escolhem os seus candidatos em congressos ou assembleias partidárias, no caso americano as primárias desenrolam-se para que cada partido escolha o candidato que apoiará na eleição presidencial), o processo encontra-se longe de ser simples e directo, com cada partido a organizar em cada um dos 50 estados que integram a União um processo eleitoral que pode revestir várias formas (assembleia eleitoral ou caucus, votação aberta – nela podem participar os filiados em cada partido e os não-filiados –, fechada – reservada exclusivamente a filiados – e semiaberta) e através do qual serão eleitos delegados à convenção nacional de cada partido, sendo nesta que ocorrerá a nomeação final do respectivo candidato.

Este sistema, indubitavelmente complexo e moroso, deverá conduzir à escolha da personalidade que o partido apoiará na eleição geral que encerrará o processo eleitoral para a designação do executivo que dirigirá os destinos da União por um período de 4 anos.

Encerrado o processo das primárias, inicia-se nova “corrida” agora limitada a dois candidatos, embora por vezes surjam outros intervenientes – “outsiders” sem apoio ou ligações partidárias (apenas uma vez no ultimo século e meio, no ano de 1912, um candidato, o ex-presidente Theodore Roosevelt, não oriundo dos partidos tradicionais (republicanos e democratas) conseguiu obter mais de 20% dos votos) – cujas probabilidades de vitória são extremamente reduzidas, que culminará com uma eleição de um colégio eleitoral que, este sim, escolherá o presidente. Este complicado mecanismo de eleição indirecta esteve na origem da enorme polémica que rodeou o acto eleitoral de Novembro de 2000 quando na ausência de um claro processo de apuramento de resultados no estado da Florida, um tribunal atribuiu a vitória a George W Bush e a maioria necessária de membros no colégio eleitoral para a sua nomeação.

Na presença de um intrincado processo eleitoral que normalmente se inicia com mais de um ano de antecedência faz todo o sentido tentar compreender as razões que sustentam a sua manutenção. Para muitos poderá servir a invocação da dimensão continental do território da União para justificar o processo e a sua morosidade, para outros o tradicional gosto americano pelo espectáculo também terá o seu peso, mas pessoalmente estou em crer que a real razão para tudo isto é tão somente a necessidade de assegurar a eleição do candidato certo!

Se não vejamos… que melhor forma haverá para as grandes empresas e os interesses económicos para assegurar a maior conformação do presidente às suas “necessidades” que obrigar os candidatos a dispor de colossais meios financeiros para suportar a realização de duas campanhas eleitorais (as primárias e a eleição geral) e um sistema eleitoral de por via indirecta?

Quem honestamente poderá esperar dos candidatos que recolheram milhões de dólares de fundos alguma independência face aos interesses económicos que financiaram as suas campanhas e a eleição?

Pessoalmente apenas conheço outro mecanismo mais eficaz para assegurar a impossibilidade de alguém ser eleito fora deste circuito de interesses – a ascensão ao poder por via hereditária ou mediante o recurso ao poder militar.

Esta realidade é tanto mais evidente quanto se conhece o peso crescente no sistema económico e no aparelho político que a indústria militar adquiriu nos EUA desde o final da II Guerra Mundial (ampliado ainda mais com a política de deslocalização das indústrias baseadas em modelos de trabalho intensivo para áreas que apresentem menores custos salariais e quando o país se encontra mergulhado em duas frentes de guerra – Afeganistão e Iraque) e o seu sucesso encontra-se bem patenteado nas cada vez menores diferenças entre as administrações republicanas e democratas, a ponto de durante as campanhas eleitorais serem mínimas as distinções entre os candidatos.

Quanto maior for a máquina montada (e financeiramente sustentada) por detrás de cada candidato maior é a tendência para concentrar a atenção dos eleitores em questões pouco polémicas e para formular grandes promessas – a modernidade, a prosperidade, a boa fortuna ou a mudança – enquanto questões verdadeiramente importantes como a guerra e os biliões de dólares consumidos por ela e pelas grandes empresa que com ela lucram, a degradação das condições de vida dos cidadãos, a inexistência de serviços de saúde e de assistência social, a falta de empregos, a emigração, a criminalidade, etc., etc., ficam esquecidas ou não merecem mais que declarações circunstanciais, mas nunca a apresentação de programas políticos estruturados para a sua resolução.

Embora o sucesso deste mecanismo que sobreleva a importância da publicidade e da demagogia em detrimento do debate de ideias e da busca de soluções para os problemas correntes das populações seja tão real, aqui e ali, ainda vai surgindo uma ou outra voz dissonante e até na imprensa surge uma ou outra referência a esta realidade tão habilmente manipulada.

Duas notas de actualidade para concluir.

Sabiam que embora há largos meses não se falasse de outros candidatos além do republicano Trump e do democrata Biden, havia mais três concorrentes nas eleições do dia 3 de Novembro: Jo Jorgensen, apoiada pelo Partido Libertário, Howie Hawkins, pelo Partido Verde e Don Blankenship, pelo Partido da Constituição? A resposta pela negativa é afinal a maior prova do que verdadeiramente representam eleições como esta.

Já pensaram que a invasão do Capitólio poderá constituir a melhor tábua de salvação para as figuras de proa do Partido Republicano ao oferecer-lhes um bom pretexto (com ou sem o recurso à figura do afastamento por razões de incapacidade prevista 25ª Emenda) para se demarcarem de Trump sem alienarem a maioria dos seus apoiantes e a este mitómano a possibilidade de manter a sua narrativa de fraude eleitoral e a mobilização das franjas mais radicais do seus apoiantes, o que significará na prática a continuação da sua influência na cena republicana e no panorama populista internacional.

Mike Theiler / Reuters

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