DO AVESSO
Um enorme grupo de mulheres e homens, mostrando grande felicidade, contempla em êxtase, no Rossio, em Lisboa, uma estrutura de madeira; sobre ela cinco homens e uma mulher, cobertos por umas capas estranhas, a que alguns chamam sambenitos e outros tabardos penitenciais, capas que os distinguem da multidão, e daqueles que os rodeiam, aguardam a sua sorte.
Cá de baixo, sucedem-se os gritos, as injúrias e as humilhações, numa atitude quase de festa.
Lá em cima, os soldados zelam para que os humilhados não fujam e alguns homens de fé, vestidos à sua moda, com mantos até aos pés calçados por sandálias, um cordão em torno da cintura, rezam e convidam os humilhados a reconhecerem os seus erros. Porém, os humilhados não sabem porque passam por tamanha punição. Por ventura, sentem-se humilhados sem saberem porque os humilham. Sentiram a seu modo, agiram a seu modo, pensaram a seu modo, mas foram modos diferentes da multidão que os condenou apenas por achar bem trazê-los à penitência.
A multidão cospe-lhes em cima e atira-lhes pedras, e os soldados dão-lhe umas vergastadas, imaginando que queiram sair do palanque onde se expõem. Os homens de fé rezam com intensidade e finda a reza lavam as suas mãos. Os condenados serão agora deixados à justiça secular, o que quer dizer entregues aos carrascos. Chamam-lhe secular, a essa justiça, em oposição ao poder sagrado do clero que os levou ali.
O povo, porque é sempre muito mesquinho, está satisfeito. Não porque este tipo de justiça lhe traga a felicidade, nem mesmo o equilíbrio às suas vidas, mas porque sentindo-se tão amargurada pela existência que leva, humilhar os outros, vê-los em dificuldades, confere-lhe assim uma espécie de recompensa. É claro que amanhã será um deles a subir ao estrado e a implorar pela vida, mas até lá, esta estonteante ilusão de que a justiça é punição, agrada-lhe; sucedem-se as vaias e os vivas.
Entre os poderosos, cujos erros são muito maiores e impunes, alguém decidiu que aquele grupo de humilhados será queimado vivo. Os gritos lancinantes dos que morrem passados pelas chamas misturam-se com os gritos extasiados com os que os veem morrer. Conhecemos bem esta sensação. Já ouvimos estes gritos nas bancadas das touradas ou dos estádios de futebol e num silêncio repugnante também os ouvimos nas redes sociais, nos microfones abertos a quem acha que deve dizer…de sua justiça.
Auto-de-fé ou auto da fé: eventos de penitência realizados publicamente (ou em espaços reservados para isso) com humilhação de condenados decorriam em praças públicas e outros locais muito frequentados, tendo como assistência regular representantes da autoridade eclesiástica e civil…e a população em euforia. Entre os que assistiam alguns lamentavam não fazer “justiça” por próprias mãos. Havia menos armas nessa altura.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90