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Quinta-feira, Abril 25, 2024

“Ornamento & Crime”: um “film noir” à portuguesa

José M. Bastos
José M. Bastos
Crítico de cinema

Em exibição
Arquitectura e cinefilia no novo trabalho de Rodrigo Areias
 A nossa avaliação: 

Em texto anterior referimo-nos à feliz circunstância de estarem actualmente em exibição comercial vários filmes portugueses. Hoje a nossa atenção incide sobre o filme de Rodrigo Areias, “Ornamento & Crime” de resto já brevemente citado, há alguns dias, a propósito da oferta cultural de que o Porto usufrui nos tempos que correm.

Quem é Rodrigo Areias?

Talvez “um homem do cinema (e da música…)” seja a expressão que melhor pode traduzir a actividade multifacetada deste realizador, argumentista, produtor, músico, programador e animador cultural.

Nascido em Guimarães em 1978 estudou gestão e cinema na Universidade Católica do Porto rumando depois aos Estados Unidos. Especializou-se em realização em Nova Iorque e estudou produção. Da sua ligação à área da música resultaram vários vídeo-clips para os “Mão Morta”, “WrayGunn” e “The Legendary Tigerman” Paulo Furtado. Este último é mesmo um habitual colaborador de Rodrigo Areias, como autor de bandas-sonoras e não só. Fez a música de “Tebas”, longa-metragem de 2007, e agora, a meias com Rita Redshoes, a de “Ornamento & Crime”.

A propósito refira-se que estes dois músicos participaram, fazendo o acompanhamento musical ao vivo, na tournée “cine-concerto” da segunda longa-metragem do realizador, “Estrada de Palha” (2012), uma incursão de Rodrigo Areias no “western”, um “western” à portuguesa: uma história de vingança no Portugal do início do século XX, que competiu na secção oficial do Festival de Karlovy Vary no qual obteve uma menção especial.

Com um percurso onde encontramos várias curtas-metragens – “Corrente” (2008) foi premiada, por exemplo, em Vila do Conde, Santa Maria da Feira e Rio de Janeiro –, Rodrigo Areias foi o responsável pela área de produção de cinema de “Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura” que nos legou trabalhos de Jean-Luc Godard, Aki Kaurismaki, Peter Greenaway, Manoel de Oliveira, Pedro Costa, Victor Erice e Edgar Pera, expressamente realizados para o evento. A faceta de produtor, iniciada em 2001, tem aparentemente remetido a actividade de criação e realização para um segundo plano. Muitas dezenas (já terá chegado à centena?) de curtas e longas-metragens, vídeos, ficções e documentários de nomes como Edgar Pêra, João Canijo, F. J. Ossang, André Gil Mata, João Rodrigues e Jorge Quintela, constam do currículo de Rodrigo Areias. Tem co-produzido com o Brasil, Reino Unido, França,

Alemanha e Finlândia. Recorde-se que “Porto”, filme do brasileiro Gabe Klinger quase integralmente rodado na cidade invicta, e que teve estreia mundial no Festival de San Sebastián, foi co-produzido por Rodrigo Areias e Jim Jarmusch (nem mais, nem menos). A este propósito note-se que para além de Lisboa, Guimarães tem-se afirmado como um local importante da nossa produção cinematográfica e muito pela acção de Rodrigo Areias. O Porto, cidade onde nasceu o cinema português e onde foram criadas as primeiras empresas de produção (Invicta Film e Caldevilla Film) tem agora uma actividade residual assegurada pela dupla Saguenail / Regina Guimarães e pelas escolas de cinema…

Mas voltemos a Rodrigo Areias que apesar do tempo dedicado à concretização dos filmes de outros ainda vai encontrando alguma disponibilidade para a criação e a realização dos seus próprios projectos. E eis-nos chegados ao seu trabalho mais recente.

Da obra de Fernando Távora a uma história de corrupção, amor, traição e crime

O professor e arquitecto Fernando Távora (1923-2005), figura incontornável da “escola do Porto” e do modernismo na arquitectura portuguesa, desenvolveu muito do seu trabalho em Guimarães. Em 2013, Rodrigo Areias realizou “1960”, um documentário de setenta minutos (vencedor do Festival de Santa Maria da Feira), em que utilizou a leitura dos textos que o arquitecto escreveu durante uma viagem por vários países como banda sonora de filmagens em super 8 – sugeridas pelos desenhos de Távora –, colhidas pelo realizador na revisitação dos mesmos locais. O fascínio do cineasta pela obra do arquitecto não se esgotou nesse trabalho e foi ela o “leitmotiv” deste “Ornamento & Crime”.

Segundo o realizador, o grande objectivo do filme agora em exibição seria uma abordagem sobretudo plástica da obra de Fernando Távora em Guimarães. A história, algo de secundário. Resultado: um trabalho, em nossa opinião, muito equilibrado. Nem a história se impõe aparecendo a obra do arquitecto como um simples cenário e local da acção, nem estes apagam o interesse e fluidez da narrativa. Pelo contrário, cada um destes “componentes” potencia o impacto do outro.

Desta vez, Rodrigo Areias aborda outro género cinematográfico: o “film noir” um tipo de filmes que combina o policial, o crime, o mistério, a intriga e o terror, herdeiro do expressionismo alemão dos anos 30, e que conheceu o seu apogeu nos Estados Unidos nos anos 40 e 50 tendo tido também algumas manifestações significativas em França sobretudo com Jean-Pierre Melville.

Um filme de autor

“Ornamento & Crime” é filmado, diríamos que inevitavelmente, a preto e branco, o registo associado ao “film noir” e ideal para fazer destacar os enquadramentos e os cenários. Um brilhante trabalho de fotografia (Jorge Quintela) e uma extraordinária iluminação que proporciona uma belíssima exploração do jogo de luzes e sombras tornam o filme muito conseguido do ponto de vista da evocação da obra do arquitecto. A somar a estes aspectos, e porque o filme é quase integralmente constituído por planos filmados com câmara fixa, um meticuloso trabalho de enquadramento e de composição e de desenvolvimento da acção dentro do “rectângulo da imagem”. Um excelente exercício de linguagem cinematográfica. Um filme em que é patente a cinefilia do seu autor.

O argumento, de Rodrigo Areias e Pedro Bastos fala-nos, obviamente, de um dectective (Vítor Correia), amantes e mulheres fatais, mas também de um “pato-bravo” da construção civil (António Durães), de autarcas corruptos, de polícias comprados, de extorsão e de jogo e, no meio disto tudo, de amor, traição e morte… Antológica a cena em que o empreiteiro se vangloria do mamarracho arquitectónico que “desenhou” e declara “que os realizadores e os arquitectos não servem para nada”…Suprema ironia…

Interessante a banda sonora original de Rita Redshoes e The Legendary Tigerman que também surgem no filme como actores. A propósito diga-se que tal como aconteceu com “Estrada de Palha” não está descartada a possibilidade de “Ornamento & Crime” vir a ser exibido em tournée “cine-concerto” com a presença dos músicos-cantores.

E, para terminar falemos de cumplicidades. A dos músicos já foi referida. Edgar Pera, “produzido” por Rodrigo Areias, faz aqui de actor: um tipo morto a tiro, estendido numa cama. “Ornamento & Crime” marcou a reabertura do Cinema Trindade gerido pela Nitrato Filmes de Américo Santos, o director do Festival de Santa Maria da Feira. Rodrigo Areias já foi premiado nesse Festival e é nele presença habitual. Foi lá que conheceu a actriz brasileira Djin Sganzerla e o montador, o cineasta brasileiro Eduardo Nunes. E é a partir do Festival da Feira que têm nascido algumas das suas co-produções. De facto, isto anda tudo ligado.

 

 

 


Título: Ornamento & Crime
Realização e Produção: Rodrigo Areias
Argumento: Rodrigo Areias e Pedro Bastos
Direcção Artística: Ricardo Preto
Fotografia: Jorge Quintela
Som: Vasco Carvalho, Pedro Marinho, Pedro Ribeiro
Música: Paulo Furtado e Rita Redshoes
Montagem: Rodrigo Areias, Eduardo Nunes
Interpretação: Vítor Correia, Tânia Dinis, Djin Sganzerla, António Durães, Ângelo Torres, Valdemar Santos, …
Origem: Portugal
Duração: 90 minutos

 

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