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Segunda-feira, Maio 5, 2025

Os EUA não parecem apenas perdidos… | Parte II

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

A opção da actual administração norte-americana pela aplicação de tarifas protectoras, invariavelmente classificada na Velha Europa como atentatória do livre comércio e fruto de um governo errático, talvez deva ser vista numa perspectiva diferente; a de um sistema político-económico que se reconhece à beira de um precipício, sempre negado, mas cada vez mais próximo e mais profundo.

Se o mais recente sinal tem sido a agitação em torno das tarifas aplicadas pelos EUA às suas importações, outros, menos propalados mas não menos graves, se têm registado, com destaque para o anúncio do abandono das regras bancárias criadas após crise do subprime, feito pelo secretário de estado do tesouro durante uma recente conferência da American Bankers Association, onde defendeu o alívio das restrições relativas aos capitais próprios dos bancos, no que apenas pode ser entendido como uma clara confirmação das dificuldades financeiras que a economia norte-americana atravessa e o prenúncio da próxima crise financeira.

Tal como a actuação do DOGE (o departamento para a eficiência onde pontifica o inefável Elon Musk) só pode ser entendida pela absoluta necessidade de reduzir uma despesa incontrolável e financeiramente insustentável, também a apregoada ideia de recuperar o tecido produtivo norte-americano graças ao aumento do preço das importações deve ser avaliada enquanto sinal do estertor há muito anunciado da oligarquia local. Depois de décadas a vermos, ouvirmos e lermos críticas e denúncias de outras oligarquias, está cada vez mais difícil disfarçar o que realmente tem germinado e governado a maior economia do mundo e, pior, o mais poderoso exército de todos os tempos.

Por conveniência própria, o Ocidente tem exposto e condenado as oligarquias e os apparatchiks orientais, escondendo as suas próprias fragilidades e idiossincrasias, mas a sucessão de acontecimentos como o Watergate, o escândalo Irão-Contras ou a absurda ideia de impor a democracia no Médio Oriente pela força (para só falar nos mais recentes e de natureza política, mas onde não se pode esquecer o absurdo que foi a política de deslocalização industrial e a absoluta loucura que tem sido a financeirização das economias e a sua repercussão em várias crises económico-financeiras de dimensão global) foram revelando a verdadeira dimensão de um modelo de desenvolvimento completamente capturado pelos interesses financeiros (oligarquia) , em vias de esgotamento e cada vez mais dependente de mecanismos de corrupção.

Sendo por demais conhecidos os efeitos da aplicação de tarifas protectoras, invariavelmente expressos na sufocação da concorrência, no aumento da inflação, na limitação ao crescimento económico e, facilitando soluções ou alternativas de natureza casuística, no crescimento da corrupção generalizada, admitir que os EUA estão em vias de se tornarem uma economia superprotegida por um muro tarifário elevado não passa de mais um eufemismo para esconder uma realidade muito pior que a que se deixa transparecer. Falar nas tarifas prontamente impostas sobre as importações chinesas, sobre as importações de matérias-primas como o aço ou o alumínio, nas ameaças de agravar as tarifas sobre todas as importações mexicanas, canadianas e europeias, ou na sugestão de tarifas semelhantes sobre todas as importações de automóveis, produtos farmacêuticos, semicondutores e madeira, enquanto crescem as ameaças de retaliação com tarifas “recíprocas” contra qualquer país que pense reagir de igual modo, não é sinal de incongruência ou mera prepotência, podendo (e devendo) ser visto como claro reflexo de sobrevivência.

Este tipo de actuação costuma encontrar-se nas chamadas economias emergentes (como o reconheceu o CEO da Euronext) e em especial nas que revelam profundos problemas, nomeadamente grandes défices orçamentais e um elevado peso de dívida pública, que é precisamente a situação da economia norte-americana, que no início deste ano apresentava um défice orçamental de 6,5% do PIB, e uma dívida pública que a FED St Louis coloca perto dos 122% do PIB, cenário francamente pior que o do final da Segunda Guerra Mundial e bem diferente do que seria de esperar de uma economia desenvolvida e com um nível de emprego estável, a acreditar nos números oficiais.

Não fosse a escolha de Trump por uma política de reduções fiscais em benefício dos mais ricos, que segundo o Comité para um Orçamento Federal Responsável irão agravar o défice orçamental dos EUA entre 5 biliões e 11 biliões de dólares na próxima década, talvez este fosse o momento para tentar um orçamento equilibrado mas, segundo aquele mesmo organismo, o que iremos ter será o contínuo aumento da dívida para níveis cada vez mais incomportáveis…

…enquanto cresce a evidência da instalação de uma verdadeira oligarquia em Washington, tal é o número de bilionários que integram ou pululam em torno da administração Trump (onde pontificam figuras como Jeff Bezos, Mark Zuckerberg e a figura de proa da campanha pela eficiência governativa, Elon Musk (que agora se diz em vias de abandonar as funções), ou os secretários de estado Scott Bessent e Howard Lutnick (que ocupam as pastas do Tesouro e do Comércio, respectivamente), e os vemos minar persistentemente a confiança nas instituições públicas e, especialmente, no banco central.

Por fim, a abordagem altamente errática à formulação de políticas económicas, criadora de uma atmosfera de grande incerteza que corrói a confiança de investidores e consumidores, expressa em tonitruantes anúncios de proibitivas tarifas que nos dias imediatos são adiadas ou completamente alteradas, na demissão em massa de funcionários públicos que, exposta a sua indispensabilidade, são depois recontratados, começa a produzir efeitos palpáveis com a queda dos principais mercados bolsistas e a corrosão daquela que tem sido a grande vantagem dos EUA: a confiança dos investidores na igualdade de condições para todos os participantes no mercado. Mesmo que esta vantagem seja apenas aparente, desperdiçando-a, a administração Trump arrisca um desgaste reputacional acrescido, altamente preocupante para as perspectivas económicas internas (convém não esquecer que o objectivo anunciado para a agressiva política tarifária do trumponomics é o aumento do investimento e da produção interna, algo fortemente dependente da capacidade de atracção de capitais externos e da confiabilidade norte-americana), potenciador de uma quebra no PIB que já é estimada na ordem dos 160 mil milhões de dólares, mais um reflexo do desperdício das suas vantagens e uma clara antevisão de uma recessão mundial para a qual não haverá resgate do FMI que nos valha.

 

Os EUA não parecem apenas perdidos… | Parte I

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