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Sábado, Abril 27, 2024

Pode o Carnaval acabar num incidente diplomático?

Rui Galiza
Rui Galiza
Jornalista

Foi no Carnaval de 2020 que, pela primeira vez, se ouviu falar do “Carnaval Brasileiro de Lisboa”. E pelos piores motivos. Basicamente, um grupo de cidadãos brasileiros, certamente pouco conhecedores dos usos e costumes, ou mesmo das leis, do país onde escolheram viver, deu largas à sua alegria carnavalesca interrompendo a circulação automóvel numa área da capital portuguesa denominada Cais do Sodré. Ou como os lisboetas dizem, “Caixodré”. Tudo acabou com uma intervenção policial que repôs a ordem pública no “Caixodré” e que resultou em duas detenções. Coisa pouca, mas há outros números mais relevantes.

Números antes do Carnaval

Residem legalmente em Portugal um pouco mais de 780.000 estrangeiros, cerca de 8% da população do país. Desses, uma percentagem a rondar os 30% são brasileiros. Para se ter uma ideia do peso da comunidade brasileira no conjunto dos estrangeiros residentes no país, no final de 2022, contavam-se cerca de 239.000 brasileiros, ficando a segunda comunidade mais numerosa, constituída por cidadãos do Reino Unido, a larga distância, com 45.000 indivíduos. Aliás temos de juntar os cidadãos de todas as nacionalidade de países europeus a viver em Portugal, para ultrapassar o número de brasileiros.

Cerca de 40% dos estrangeiros habitam no distrito de Lisboa, o que faz com que a percentagem de estrangeiros a nível distrital seja superior à verificada a nível nacional, cifrando-se nos 13% do total da população. Mas fiquemos pelo óbvio: os brasileiros constituem a maior comunidade estrangeira em Portugal, concentrando-se principalmente, e como será natural, em torno de Lisboa. E querem celebrar o Carnaval na cidade!

E os lisboetas?

Não será exagero reconhecer que os Lisboetas não são grandes adeptos do Carnaval, que aliás nem é um feriado oficial no país.

Manda a tradição que o governo conceda “telerância de ponto” nesse dia. E é assim, graças ao feriado oficioso de terça-feira de Carnaval, que muitos trabalhadores arranjam forma de beneficiar de um fim de semana alargado, altura aproveitada por muitos lisboetas para passear, descontrair na cidade ou gozar o Carnaval. Longe de Lisboa…

Tudo reunido, o Carnaval acaba por proporcionar uma espécie de turismo interno sazonal, importante para a economia para pequenas localidades não muito longe de Lisboa onde, ao contrário da capital, o Carnaval tem tradição, como Sesimbra ou Vedras, que acolhem muitos Lisboetas. Mas apesar desse movimento a verdade é só uma: assim que deixam de ter idade para a fantasia na escolinha, os lisboetas gostam mais das pequenas férias do que da efeméride carnavalesca propriamente dita.

A razão do desinteresse dos lisboetas em relação ao Carnaval, ao ponto de os que o gostam de celebrar o fazerem longe da cidade, é uma realidade para o qual não existe uma explicação evidente. Talvez porque a população de Lisboa sofra já o suficiente com o facto de o país ser, quase literalmente, um rectângulo com algumas centenas de quilómetros de comprimento por ainda menos de largura, servido por uma boa rede de estradas. Como resultado, tudo o que é protesto, manifestação, etc., concentra-se na capital do país, atazanando a vida do lisboeta que, terminado um dia de trabalho, gostaria naturalmente voltar para a paz do seu lar, levar tranquilamente as crianças ao judo ou ao curso de teatro, enfim, desfrutar do seu dia a dia sem que a manifestação do sindicato dos técnicos oficiais de contas canhotos cause transtorno às suas vidas. Na realidade, se juntarmos aos protestos por tudo e mais alguma coisa os jogos da champions League do Benfica, os concertos, festivais e outros grandes eventos (basta recordar a “fuga dos lisboetas” durante as Jornadas Mundiais da Juventude católica no ano que passou…), temos de reconhecer que o pessoal de Lisboa já tem a sua dose e talvez seja complicado juntar mais um evento… Mas isto é tudo “talvez”, pois a verdade é que nós (sim, sou um lisboeta) não somos grandes fãs do Carnaval, ao ponto de haver um nicho de negócio para locais de diversão nocturna que nesses dias/noites, para atrair cliente, ignoram completamente que o Carnaval existe…

E os brasileiros?

Os nossos amigos brasileiros referem a existência de 15 grupos ou “blocos” que, na cidade ou arredores, pretendem desfilar nesse evento a criar: O  Carnaval em Lisboa! Mas a lei do país, e do município, indica que tal não pode ser feito de forma, digamos que espontânea, o que acontece, por exemplo, para eventos de cariz político.

Depois do desastre de relações públicas ocorrido no “Caixodré”, aproveitado inclusive por forças anti-imigração para a sua publicidade xenófoba segunda a qual os imigrantes não querem cumprir a lei como qualquer organização da cidade que promova eventos festivos no espaço público, a única solução passa naturalmente por deixar de lado uma certa informalidade e realizar o evento respeitando todos os regulamentos e o pagamento de todos os serviços previstos na lei.

O município de Lisboa até isentou o evento em projeto das taxas camarárias, mas os custos inerentes ao corte de trânsito, policiamento, WCs amovíveis, seguros de responsabilidade civil, etc., etc, teriam de ser suportados pela organização, num orçamento final estimado em 20 mil €uros, que os promotores alegam não ter possibilidades de suportar.

E entra o desfile político

Em julho de 2023 o tal conjunto de blocos entregou uma petição na Assembleia Municipal de Lisboa na qual solicitava o empenho numa “política pública para o Carnaval na capital portuguesa”. O núcleo do Partido dos Trabalhadores brasileiros em Lisboa, referiu que o actual Presidente do Brasil, e o seu partido, estão solidários com a luta e que iriam intervir tendo em vista uma “resposta integrada”, admitindo mesmo a possibilidade de diálogo entre os governos dos dois países e o município de Lisboa. Já a Embaixada do Brasil em Lisboa, parece ter adiantado um apoio que convertido para Euros perfazia 5.000 Euros, um montante pouco compreensível pelo Lisboeta comum que vê os seus filhos a angariar, sem grandes dificuldades, um montante semelhante para as suas viagens de finalistas do ensino secundário…

A título de comparação, vivem pouco mais de 23 mil cidadãos chineses em Portugal, cerca de metade dos quais no distrito de Lisboa. Como fazem para pagar a “Festa da Primavera” que anualmente realizam em Lisboa por ocasião do ano novo chinês? Simples: o município de Lisboa dispensa as taxas e a Embaixada do país paga o grosso da fatura…

O mundo artístico também entrou em cena. Luca Argel, cantor e compositor luso-brasileiro há anos radicado em Portugal, cujos projetos, como refere no seu site, “conciliam pesquisa histórica, ativismo político e experiências musicais que desconhecem fronteiras”, foi a voz de ocasião, num discurso onde conceitos como ocupação simbólica do espaço público e reconciliação histórica ao estilo pós-moderno coincidem na defesa do apoio financeiro da cidade de Lisboa ao projeto, intenção que, nas redes sociais, mereceu o comentário lacônico dos lisboetas ao estilo “mais uma despesa para eu pagar…”. Entretanto, no grande desfile das escolas no Rio de Janeiro deste ano, Portugal, e um dos seus vultos culturais do país (Saramago) marcaram presença, facto usado para “exigir” uma certa reciprocidade entre os festejos de ambos os lados do Atlântico.

E porque não?

Sejamos sinceros: para o município de Lisboa, 20.000 Euros não é nada. Nem num contexto como o actual, com Lisboa transformada na “cidade na moda” da Europa, e que obriga o município a esforços extra ao nível das políticas de habitação (e que se têm revelado insuficientes), continua a ser pouco relevante. Claro que se colocam questões, como a do favorecimento. Porquê financiar o Carnaval brasileiro e não as festividades das outras comunidades? E seria exequível estar a fazê-lo para todas as comunidades? E porque não fazem os brasileiros como a comunidade chinesa? Será que quem está a promover uma “política pública para o Carnaval na capital portuguesa” não se esqueceu desse “pormaior” que é a vontade dos lisboetas, que vivendo na cidade com o PIB mais elevado do país, poderiam ter as festividades que quisessem mas, neste caso, preferem não ter?

Questões à parte, este lisboeta que é apenas mais um que não é grande adepto de “carnavais”, considera que sim. Se é importante para a maior comunidade estrangeira a residir na minha cidade e arredores poder comemorar esta ocasião ao estilo brasileiro, se isso contribui para a sua felicidade ou apenas para matar saudades, pois que o evento seja realizado!

Agora, por favor, lembrem-se de respeitar o direito inalienável da maioria em ignorar olimpicamente esta data, pelo que a escolha do local é relevante, e se pudessem vocês financiar a coisa também seria, digamos que, bem visto pelos lisboetas já cansados de tanto evento e manifestações.

Muito obrigado e bom Carnaval brasileiro de Lisboa em 2025!

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