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Sábado, Abril 27, 2024

Políticos, Técnicos e Bombeiros

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Nas semanas que têm decorrido temos tido ecos de uma polémica protagonizada por um grupo de interesses – a Liga dos Bombeiros Portugueses – a propósito de posições assumidas por um dirigente da Administração Pública – o Presidente da AGIF – Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais, I.P. – a qual se apresenta publicamente com a seguinte missão.

A nossa missão é fazer o planeamento, coordenação estratégica e avaliação do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais.

Especificando ainda:

O que fazemos? Integração de políticas públicas com efeitos; Na acumulação Na acumulação de combustível vegetal;. No comportamento da população;. Na atividade dos agentes do SGIFR. – Avaliação e monitorização de prevenção e supressão – Gestão do conhecimento – Promoção da especialização e profissionalização dos agentes do SGIFR.

Exige a Liga nada mais nada menos que a demissão do presidente da AGIF.

Os conflitos mais recentes de que tenho memória opuseram os bombeiros à Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil e tiveram origem no enquadramento operacional da intervenção dos bombeiros que punham em causa a alteração da organização distrital. A Liga, então dirigida por Jaime Marta Soares, revelou-se como de costume extremamente vocal. Pensou-se que a sucessão deste por António Nunes, que se tornou particularmente conhecido durante o seu período como dirigente máximo da ASAE inauguraria um novo estilo de intervenção pública da Liga.

O não ser assim exige que se tente olhar para as posições assumidas pelo Presidente da AGIF que prestava declarações a uma Comissão Parlamentar

Numa peça publicada no Diário de Notícias que recomendo pela clareza da apresentação e pela preocupação de recolher contributos de várias origens, ainda que não prestados directamente ao jornal(i), escreve-se:

As palavras que desencadearam esta “guerra” foram proferidas por Tiago Oliveira no passado dia 27 de julho, numa audição parlamentar na comissão de Agricultura e Pescas, a propósito do relatório de atividades do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais de 2022.

Contrariando o princípio de que quantas mais aeronaves melhor, disse que “não são necessários tantos meios aéreos” para o combate aos incêndios florestais e pediu aos deputados para que “saiam da discussão do meio aéreo”. E, revelando ainda alguns sinais do seu trabalho anterior para a AFOCELCA, desvalorizou a “questão do eucalipto”.

“O discurso político de culpabilizar o eucalipto, na minha opinião, está completamente errado, o discurso político de dizer que isto se resolve com mais meios aéreos também está errado, porque sabemos que os meios aéreos não resolvem, encarecem. O fogo resolve-se no chão com as enxadas”, frisou.

Mas o que provocou a ira de António Nunes, presidente da LBP, e dos autarcas, foi o que disse a seguir, quando questionou também o facto dos “corpos de bombeiros receberem em função da área ardida”, considerando o “objetivo perverso”.

O presidente da AGIF sublinhou também que “há municípios a gastar meio milhão de euros, uma barbaridade de dinheiro nos bombeiros, quando não gastam dinheiro a gerir a floresta”.

Tiago Oliveira admitiu que ainda existem “incómodos” no país. “Há um conjunto de resistências de natureza política, de distribuição de poder, de não cumprimento de procedimento de poderes, de dinheiros não verificados que têm de ser escalpelizados”, disse.

Na mesma linha, três académicos que têm dedicado atenção ao fenómeno dos fogos florestais, sendo que pelo menos um deles participou na Comissão Independente criada após as tragédias de 2017, vieram reforçar em artigo inserido no Público de 3-08-2023(ii) que o sistema de financiamento das Associações Humanitárias de Bombeiros previsto na Lei nº 94/2015, de 13 de Agosto(iii), premeia o aumento de área queimada.

Portanto, a importância do risco de incêndio florestal, dependente da área queimada e do número de ignições, assume especial protagonismo.

Como disse o presidente da AGIF, e na linha do recente relatório do Tribunal de Contas intitulado “Auditoria ao financiamento pelos municípios de corpos e associações de bombeiros”, este incentivo é perverso, porque premeia a ocorrência do fenómeno que se pretende evitar. Claro que um maior número de fogos e a ocorrência de maiores áreas queimadas implicam maiores gastos por parte dos bombeiros, que precisam de ser ressarcidos, mas aquilo que devia ser premiado era a redução da área média anual queimada, ao longo de um período suficientemente longo para constituir uma tendência sólida. Essa redução só poderá resultar de um trabalho de gestão integrada do fogo rural, que articule devidamente as ações de prevenção e de supressão do fogo, com boa coordenação entre o ICNF, a ANEPC, a Guarda Nacional Republicana (GNR), as autarquias e as organizações do setor florestal, tal como preconizado no Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais 20-30 e no Plano Nacional de Ação da AGIF.

Qual a objecção de António Nunes às declarações de Tiago Oliveira, presidente da AGIF nomeado em 2018 no quadro de uma profunda alteração de estratégia determinada pelos desastres de 2017. Recorrendo ainda à peça do DN temos:

Em declarações ao “Polígrafo”António Nunes (que não respondeu ao DN) refutou perentoriamente que houvesse bombeiros financiados à conta da área ardida, defendendo que “não há nada na lei, em nenhuma lei, e os bombeiros só recebem aquilo que está na lei ou nos protocolos”.

Portanto, afirmou, “não há nenhuma contratualização com ninguém que vá receber por área ardida”. Quanto à forma como é distribuído o financiamento aos corpos de bombeiros, “é feito pelo índice de risco, mas quando há um incêndio de grandes dimensões são mobilizados os bombeiros de todo o país, que não recebem mais por isso”.

“A fórmula é o índice de risco de onde os corpos de bombeiros pertencem, mas cada corpo de bombeiros nunca pode receber mais de 10% do que no ano anterior”, indicou o presidente da LBP. Esse critério está disposto no ponto 6 do financiamento permanente disposto na Lei n.º 94/2015 em que se lê que “da aplicação do disposto no presente artigo não pode resultar, em cada ano económico, uma variação negativa do financiamento superior a 5 % ou uma variação positiva do financiamento superior a 10% a atribuir a cada AHB por reporte ao montante atribuído no ano precedente”.

Nunes salientou que “mesmo que o concelho ardesse todo, os bombeiros não receberiam mais do que aqueles 10% no ano seguinte” e que, por isso, estão “indignados”. “As pessoas depois pensam que deixamos arder para recebermos mais dinheiro e isso não é verdade”, frisa.

 

Quem tem razão?

Sabemos que em matéria de indicadores de gestão é perigoso construir medidas simplistas em matéria de justiça e de segurança, por exemplo para medir efeitos de prevenção da criminalidade. Ou em matéria de cuidados de saúde medir a eficiência dos cuidados pelo número de altas concedidas, como se terá estado a fazer com as empresas intermediárias na contratação de médicos.

Certamente ninguém pensa que os bombeiros deixarão arder por ser uma forma de serem mais facilmente ressarcidos. Em todo o caso terão de ser analisados episódios em que, como terá acontecido em Odemira, se deixa arder um empreendimento de alojamento local “por não haver ordens”(iv).

Talvez se possa ajustar a redacção da Lei por forma a evitar que se interiorizem avaliações da performance que não reconheçam os ganhos de prevenção.

Quanto ao financiamento adicional pelos municípios coloca um problema cuja resolução não parece fácil até por haver associações humanitárias de bombeiros em situações de crise que não têm a ver com o combate a incêndios.

Mas esta diferença de sensibilidades não parece dever ser fundamento de um pedido de exoneração que atendendo ao período de exercício de funções já decorrido mais parece visar uma não-recondução.

Que aliás não teria fundamento no objecto estatutário da AGIF que tem como missão AVALIAR o sistema.

 

Que diz o Governo?

Segundo o DN, ainda na peça que venho a citar, o Ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, terá dito:

Pude ouvir as explicações do sr. engenheiro Tiago Oliveira, da AGIF, e ele próprio lembrou que não quis ofender nem os autarcas, nem os bombeiros. O que ele quis dizer, todos temos a consciência, é que é necessário investir mais na prevenção do que no combate”. Quando ao pedido de demissão por parte da LBP disse não ter “nada a acrescentar em relação aquilo que já disse“.

A Ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, afina pelo mesmo diapasão. Segundo texto divulgado pela Lusa, afirmou em 13 de Agosto que Tiago Oliveira, tem “enorme respeito” pela classe.

“Há uma coisa que eu conheço que é o enorme respeito que o Tiago, como todos nós que estamos na política, temos com os nossos bombeiros”, afirmou a governante, à margem de uma visita aos concelhos de Odemira (Beja) e Aljezur (Faro.”

Salientando que, muitas vezes, a forma como os políticos se expressam “pode não ser a mais feliz”, a ministra disse hoje que a declaração do presidente da AGIF “não traduz de todo o sentimento de profundo reconhecimento que o Governo e a população têm relativamente ao trabalho dos bombeiros”.

“Não devemos alimentar aquilo que não é o sentimento do Governo e muito menos do presidente da AGIF, que é extremamente profissional”, sublinhou, insistindo que conhece “o enorme respeito” que Tiago Oliveira “tem por todos aqueles que fazem parte deste ecossistema de prevenção e de combate aos incêndios”.

Admitindo que ainda é possível fazer melhorias, Ana Abrunhosa salientou que existe “um mundo de diferença” entre o período “antes da AGIF e depois da AGIF” no que diz respeito à prevenção e ao combate aos incêndios.

Curiosa esta referência de Ana Abrunhosa, ela própria uma relativa neófita no Governo, aos que estão na política, para onde copta Tiago Oliveira, ressalvando que como políticos, se podem exprimir de forma que não seja a mais feliz.

A ideia de defender Tiago Oliveira como titular de um alto cargo público, escolhido numa base técnica, e responsável pela avaliação do sistema, com inteira independência, está aqui ausente.

Sintoma inequívoco da debilidade de uma Administração Pública em que até as Agências e as Autoridades estão sujeitas a pressões impiedosas de grupos de interesses.

Falta referir que André Ventura após contacto com os Bombeiros Voluntários de Camarate se associou publicamente ao pedido de demissão de Tiago Oliveira, o que gerou de imediato uma reacção negativa daquela corporação contra o aproveitamento.

Não sei se Ventura ainda se dá como salazarista. Por mim, começo a ficar convencido de que necessitamos de um Salazar que o ponha na ordem.

 

Notas

(i) DN de 13-8-2023. Peça assinada por Valentina Marcelino. “Tiago Oliveira. Um “sobrevivente” que escapou a um incêndio e que prometeu contrariar o sistema”.

(ii)O financiamento dos bombeiros depende da área queimada”, artigo subscrito por José Miguel Cardoso Pereira, Paulo Fernandes e Joaquim Sande Silva, professores e investigadores de Engenharia Florestal respectivamente no Instituto Superior de Agronomia, na UTAD e na Escola Superior Agrária de Coimbra

(iii) Lei 94/2015, de 13 de Agosto (Regras do financiamento das associações humanitárias de bombeiros, no continente, enquanto entidades detentoras de corpos de bombeiros (primeira alteração à Lei n.º 32/2007, de 13 de agosto, que aprova o regime jurídico das associações humanitárias de bombeiros)).

(iv) Só depois deste episódio o Governo começou a falar em compensar os empresários do turismo. rural.

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