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Terça-feira, Março 19, 2024

Portugal-Brasil: O antilusitanismo não é uma anedota

Carta Aberta ao jornal “Valor Econômico”

Em artigo publicado no EU & do Valor (14/01/2021), o sociólogo José de Souza Martins (JSM) afirma ser “simplificação” considerar o anedotário brasileiro sobre os portugueses manifestação de antilusitanismo.

Segundo ele, os portugueses não são os únicos alvos de gozação e humor depreciativo: “essa – escreve – é uma característica da modernidade e existe em diferentes países”.

Ao pensar dessa forma, Martins recusa-se a admitir o óbvio ululante – a existência no Brasil, desde pelo menos o século XIX para cá, de uma persistente corrente antilusitana, criada pelos portugueses do Brasil, com D. Pedro à cabeça, para justificar a separação e criar, de cima para baixo, a nova nacionalidade, até aí inexistente. Uma corrente de que as anedotas são manifestamente consequência. Ainda que epifenómeno de um problema mais vasto e profundo, é errado classificar de mera “simplificação” a atribuição de antilusitanismo ao anedotário antiportuguês, muito dele altamente ofensivo e sentido como injustificada humilhação pela comunidade portuguesa no Brasil.

Também não procede inteiramente a argumentação de JSM de que brasileiros há muitos e, portanto, diferentes Brasis, o que tornaria inúteis aquilo a que chama “simplificações estereotipadas” a respeito “da extensa diversidade de concepções, lá e cá, dos nacionais de um país em relação aos do outro”.

Isso é certo, mas não anula a existência de uma ideologia geral de cariz antilusitano sistematicamente propagada pelo Estado brasileiro através da Escola e dos Média, tendo por objetivo desvalorizar e menosprezar a herança histórica e cultural portuguesa. Essa sim, é que é a questão central, que depois legitima as “bobeiras disseminadas em nome de valores negativos”.

Expressão no quotidiano dessa questão maior que é o antilusitanismo impresso no ADN da nacionalidade brasileira, as anedotas estão longe de ser um sinal de modernidade – pelo contrário, são um sinal evidente de atavismo secular.

Não à toa, há já pelo menos um século que os intelectuais portugueses – entre outros, Serafim Leite, nos anos 30, e Jorge de Sena, nos anos 60 – vêm reivindicando revisão conjunta dos manuais de História (como o Brasil fez com a Argentina) sem todavia nunca serem ouvidos.

Para construir sua própria nacionalidade, o Brasil talvez não tivesse tido outra alternativa que não fosse obliterar a memória portuguesa e fazer do luso o outro a rejeitar, inclusive pela derrisão do ridículo; mas o afastamento da raiz portuguesa acabou por tornar o Brasil mais estrangeiro em relação a si próprio, sendo hoje mais que tempo de rever essa situação. Se possível, através de um exercício recíproco de humildade – Portugal reconhecendo o que no seu passado brasileiro houve de terrivelmente desumano e o Brasil aquilo no seu pretérito português houve também de exaltante e inspirador, dando ao luso e a si próprio o que afinal é de ambos.

Anedotas à parte, centremo-nos no essencial – ver se é possível, 200 anos volvidos, sem simplificações nem recusas em ver o óbvio, descobrir – como escreveu Eduardo Lourenço – o que da história comum apesar de tudo ainda emerge como “possibilidade e promessa de um diálogo que mutuamente nos enriqueça e humanize”.

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