Portugal começa da pior maneira
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Rigor na aplicação de fundos comunitários
Nos dez anos que passei no Parlamento Europeu (1999-2009), dez anos em que fiz sempre parte da ‘Comissão de Controlo Orçamental’, a reivindicação por esta comissão de uma Procuradoria Europeia foi permanente.
Depois de várias peripécias, o REGULAMENTO (UE) 2017/1939 DO CONSELHO de 12 de Outubro de 2017 deu execução a uma cooperação reforçada para a instituição da Procuradoria Europeia, subscrevendo o argumento fundamental:
Tanto a União como os Estados-Membros da União Europeia têm a obrigação de proteger os interesses financeiros da União contra infrações penais, que anualmente geram significativos prejuízos financeiros. No entanto, actualmente, estas infracções nem sempre são suficientemente investigadas e objeto de ação penal por parte das autoridades nacionais de justiça penal.’
Da nova instituição fazem por enquanto parte 22 Estados, podendo os remanescentes aderir, com excepção da Dinamarca que tem uma cláusula de exclusão nesta matéria.
Penso que o regulamento, procedimentos e entrosamento de legislações europeia e nacionais são extraordinariamente tortuosos e tornam ainda mais complexa, menos eficaz e menos transparente o controlo da utilização de fundos públicos e a sua defesa contra a fraude, o nepotismo ou a sua utilização em favor de grupos de interesse.
Em qualquer caso, independentemente do que décadas de actividade profissional nesta matéria me levaram a concluir sobre a melhor forma de defender o interesse público na administração dos fundos públicos, a nova Procuradoria Europeia existe, tem poderes reais – e sobretudo morais – extremamente importantes no domínio orçamental e, na sequência do significativo aumento de meios financeiros europeus previsto para o período 2020 – 2027, seria fundamental que Portugal tratasse dela com o máximo de rigor.
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Ignorar a decisão do júri europeu
Um dos passos mais importantes para a montagem deste gabinete europeu foi a o da nomeação dos vinte e dois procuradores europeus, um por cada Estado participante.
A nomeação destes procuradores é da responsabilidade do Conselho – ou seja, do organismo onde os governos se fazem representar – mas na base da selecção feita por um júri constituído por doze personalidades europeias de primeiro plano na justiça e controlo de contas.
Entre as personalidades contam-se um representante do Parlamento Europeu e a personalidade portuguesa mais prestigiada no domínio do controlo orçamental, Victor Caldeira, que é hoje o Presidente do Tribunal de Contas português e que foi também presidente do Tribunal de Contas Europeu.
Apesar disso, o Governo português resolveu ignorar a decisão do júri europeu, impondo o candidato preterido e vetando a candidata selecionada pelo júri, a Procuradora Ana Mendes de Almeida, numa atitude escandalosa de desrespeito por um júri europeu (e também de desrespeito pelo Parlamento Europeu e pelo Tribunal de Contas do nosso país).
Portugal foi acompanhado nesta atitude por outros dois países europeus, a Bélgica (por razões de decoro, abstenho-me de dar a minha opinião sobre a transparência de processos de selecção política no país europeu a quem pessoalmente mais devo e que me deu asilo) e a Bulgária, este último, o país com a pior reputação europeia em matéria de controlo das contas públicas.
Para compor ainda mais o ramalhete, decidiram ainda as autoridades portuguesas martelar um procedimento de pontuação (posterior à abertura de concurso nacional) pelo qual pretendem que o candidato português a ser seleccionado pelo júri já tinha sido ‘pré-seleccionado, e que este se deveria limitar a carimbar a sua opção.
O procedimento foi de tal ordem vergonhoso que levou a uma declaração escrita de protesto e aviso de não tolerância da sua repetição por parte de quatro países – Áustria, Estónia, Luxemburgo e Países Baixos – que, se bem que eu não a tenha encontrado no site do Conselho, me chegou às mãos, e estou certo que chegará também às mãos dos principais actores europeus neste processo.
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Consequências políticas para Portugal
A irresponsabilidade com que em Portugal se ignoram princípios e procedimentos na gestão pública teve aqui uma outra triste confirmação. Que uma atitude destas se traduza no desprestígio do país e em custos potenciais elevadíssimos – a partir do momento em que a desconfiança pelo país se instala, veremos tudo tornar-se mais difícil – parece passar completamente ao lado dos decisores políticos.
A verdade é que a reputação de um país é o elemento decisivo na forma como as instituições europeias resolvem facilitar ou dificultar qualquer processo de atribuição de fundos, algo que pude repetidamente confirmar ao longo da minha vida profissional. Para dar lugares aos amigos – não creio que tenha havido qualquer outra preocupação neste processo – quem detém posições de responsabilidade não hesita perante nada, e é isso que me parece profundamente lamentável.
Dizia recentemente um ex-Ministro que o Novo Banco é pior que o Velho. Pior não sei se será, mas que razões teremos para esperar que seja melhor quando rigorosamente nada mudou na forma como em Portugal se consideram os princípios de rigor, isenção, competência e imparcialidade na gestão do interesse público?
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