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Terça-feira, Maio 6, 2025

Finalmente, um verdadeiro tabu

José Sócrates
José Sócrates
Antigo Primeiro Ministro.

No debate televisivo eleitoral os dois líderes falaram de TGV.  Um deles disse que quer fazer um comboio de alta velocidade entre Lisboa e o Porto. O outro não. O outro não quer fazer nada, é tabu.

No entanto, aquele que o quer fazer diz que não é TGV, é apenas alta velocidade. Bravo. Há dias atrás, o tema voltou. Entrevistado pela TVI o mesmo líder que queria fazer o comboio de alta velocidade que não é TGV explicou, com aquele ar de domínio técnico do assunto que torna tudo evidente e simples, que o TGV só se justifica para cidades com distâncias entre si de mais de seiscentos quilómetros como, por exemplo, Paris e Bruxelas. Bom, a distância entre estas duas cidades é de trezentos quilómetros e a distinção entre alta velocidade e TGV não existe.

As palavras do líder político que diz que quer fazer um linha de alta velocidade sem ser TGV parecem sugerir que a sua proposta seja a de melhorar o traçado da linha de modo a que o percurso entre Lisboa e Porto possa ser feito em menos de duas horas. Essa solução parece-me não só errada, mas também impossível. As razões merecem, uma vez mais, ser explicadas. Primeiro, para fazer a viagem em menos de duas horas seria necessário que a linha do norte fosse renovada no seu traçado de modo a permitir uma velocidade máxima de 210 km por hora (de modo a obter uma velocidade média de 163 km por hora). Isso significaria refazer 77% da linha. Dois terços. O custo estimado seria de 3 000 milhões de euros para ganhar cinquenta minutos[1]. Por outro lado, ainda que o traçado permitisse essa velocidade, ela dificilmente seria atingida em razão dos tráfegos heterogéneos – comboios rápidos, comboios urbanos e comboios de mercadorias, todos convivem na mesma infraestrutura. A consequência é que nem os comboios rápidos são rápidos, nem os urbanos são em quantidade suficiente, nem os de mercadorias têm boas condições de operacionalidade. Em síntese, o problema da linha não é só o traçado, mas a  capacidade para suportar todas estas tipologias de tráfego que têm exigências muito diferentes.

Estas razões, aliás, explicam o fracasso continuado do projeto da chamada modernização da linha do Norte, que sempre conduziu a investimentos elevados e a melhorias pouco significativas. Custos excessivos para melhorias marginais. Trinta anos depois, a nova estratégia parece ser mais do mesmo. Se não deu resultado, tentemos de novo, agora com mais dinheiro e com mais entusiasmo. Erro de diagnóstico  – o principal problema não foi investir pouco, mas investir mal.

É de há muito meu convencimento que não haverá nenhuma melhoria significativa na rede ferroviária do País sem uma rede de alta velocidade. O caso mais evidente – e, admito, o mais importante – é justamente o da linha do Norte, entre Lisboa e o Porto, cujo problema de saturação me parece insolúvel sem que seja autonomizada uma nova linha de alta velocidade exclusivamente dedicada a passageiros. Todavia, como julgo que está cada dia mais claro, o problema do TGV em Portugal não é um problema técnico mas político ou, melhor dito, um problema de preconceito político.

O primeiro preconceito é uma entediante rotina portuguesa  – o mito do elefante branco. O mesmo argumento foi levantado contra o Alqueva, contra o novo Aeroporto e contra tudo o que seja projeto público, modernizador e ambicioso. A política está cheia destes personagens que fazem da “cautela” uma carreira e passam toda a sua vida a explicar aos outros que o melhor é não fazer nada. Não correr riscos. No entanto, depois de todos os estudos feitos e em face da experiência internacional é preciso dizer, de novo, que nada fazer tem custos – e o principal deles é ficar para trás no desenvolvimento económico. Insistamos, uma vez mais: o TGV é um dos projetos mais importantes do ponto de vista da mobilidade nacional; um dos projetos mais estruturantes de desenvolvimento económico, tecnológico e social; um dos projetos ambientais mais importante na área dos transportes, com uma significativa redução das emissões de carbono (é absolutamente espantoso que em 2018, a TAP tenha transportado cerca de 700 mil passageiros através de uma ponte aérea).

Mas ponhamos as cartas na mesa. O verdadeiro problema do TGV nada tem a ver com a comparação de alternativas, com o debate acerca dos custos e benefícios do projeto ou com as dúvidas da sua rentabilidade, que está mais que demonstrada. O problema tem apenas a ver com o governo Sócrates . O problema reside no facto deste projeto se ter transformado numa bandeira daquele governo. A extraordinária história política do projeto vem do tempo em que a direita política começou por o defender, ainda no governo Durão Barroso. Depois, na oposição, resolveu critica-lo e, mais tarde, já de novo no governo, decidiu suspende-lo, apresentando-o como símbolo de despesismo. Mas era preciso ir ainda mais longe. O resto do trabalho sujo foi feito pelo Ministério Público que, conscientemente, criminalizou o projeto, incluindo-o na acusação do Processo Marquês.

Não me quero afastar muito da decisão que tomei de não me pronunciar sobre o processo enquanto decorre a fase de instrução, mas tenho-me apercebido de que poucos conhecem verdadeiramente a acusação. E é preciso que a conheçam. Comecemos por dizer que o Ministério Público não me acusa, nem ao governo, de ter favorecido qualquer concorrente no concurso. A acusação não é essa. A acusação, na verdade, é a de que eu como Primeiro Ministro terei manipulado os Ministros de modo a que fosse introduzida no contrato de concessão do TGV uma cláusula que daria ao vencedor do concurso um direito a ser indemnizado de forma desproporcional no caso de o contrato não obter o visto do Tribunal de Contas. Confuso? Repito – cláusula, manipulação de ministros, indemnização. Volto a explicar. A tese do Ministério Público é que eu como Primeiro Ministro terei andado anos e anos a fingir que queria fazer o TGV, quando, afinal, o que queria era que o concurso fosse chumbado pelo Tribunal de Contas, de modo a que os concorrentes tivessem uma indemnização a que não teriam direito se a cláusula não existisse. Isso mesmo – se ninguém foi favorecido, se nem eu, nem nenhum ministro interveio na independência técnica do júri do concurso então algum plano oculto deveria ter existido – ah, a cláusula. Foi, então, a cláusula. Eis uma acusação que parece saída de um romance policial que tem a vantagem de ser escrito do fim para o princípio – há certamente um crime, resta agora descobrir qual. E quanto mais surpreendente melhor.

Em 2016, um Tribunal Arbitral considerou que a cláusula em questão não resultou de nenhum impulso político, não é ilegal, não é prejudicial ao interesse público e resultou de uma negociação informada, diligente, racional e vantajosa para ambas as partes. O Tribunal Arbitral também conclui que a principal razão do chumbo pelo Tribunal de Contas foi a vontade do governo que me sucedeu de que isso acontecesse. Esse governo não só declarou publicamente que desistia do projeto, como também não fez o devido cabimento orçamental. Esta sentença já transitou em julgado. Bem vistas as coisas, o que mais impressiona nesta história é que a cumplicidade entre Ministério Público, o jornalismo e a política tivessem sido capazes de transformar uma acusação estapafúrdia numa acusação aparentemente séria. Acusação essa que não precisa de ser acompanhada de qualquer indício ou prova. O insulto basta.

Regressemos ao projeto TGV e olhemos as coisas assim. Há trinta anos a viagem mais rápida de comboio entre Lisboa e Porto era feita em 3 horas. Hoje, trinta anos depois, a mesma viagem demora  2h e 50 m.  Nestes mesmos trinta anos o estado investiu milhões e milhões na linha do Norte para reduzir a viagem em dez minutos. Também há cerca de trinta anos, por ocasião da Expo 92, Espanha inaugurou a sua primeira ligação em alta velocidade entre Madrid e Sevilha. 1992. Isto quanto ao passado e aos últimos trinta anos.  Quanto ao futuro e aos próximos trinta, o que nos prometem é que nada de novo virá a não ser o TGV espanhol que já terá chegado a Badajoz e a Vigo. O que nos conduz ao significado político do tabu sobre o TGV – ao momento em que a política se torna refém do Ministério Público, aceitando que seja este a decidir o que deve e não deve ser feito para o desenvolvimento do País. Eis o verdadeiro interdito. Eis o ponto a que chegámos.

[1] – Estes números são referidos por João Cunha em artigo no jornal ECO de 18 de Setembro de 2019


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


Artigo publicado também no DN


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