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Quarta-feira, Março 27, 2024

Quando a cor da pele é notícia

Um século depois da implantação da República. Perto de três mil ministros e secretários de Estado empossados. Pela primeira vez, na história do país, o chefe de Governo escolhe uma ministra negra para liderar um ministério.

Na última semana muito se escreveu sobre a proveniência dos novos governantes. Sobre as famílias e sobre as diferenças. Também sobre a cor da pele e a raça. Mas será que ainda tem sentido citar negro, cigano, ou cego para descrever quem ocupa o cargo público? É o mesmo que caracterizar a cor dos olhos ou do cabelo? Sim e Não. Depende sempre da perspectiva e da história.

O TORNADO foi à procura de resposta. Apelou à reflexão. E obteve duas reacções: São homens. Dão a cara por campos políticos opostos. E falam sobre a nomeação de uma ministra da Justiça. Ministra, que é mulher. E ministra, que, por sinal, também é negra.

 

Helder Amaral, deputado do CDS-PP Helder amaral 1

«Há racismo em Portugal»

José Hélder do Amaral nasceu em Angola. Tem 48 anos. Frequentou a licenciatura em Direito e é técnico de Turismo. Também é deputado do CDS-PP, eleito pelo círculo eleitoral de Viseu.

Para o deputado, a existência de uma ministra negra não lhe merece nenhuma referência em especial. Acredita que a escolha foi feita com base na sua formação e capacidade técnica para o cargo. E recusa a ideia de que o tom da pele tenha qualquer influência nessas qualidades. O facto de ser a primeira, e por isso mesmo merecer, “por parte da maioria das pessoas, uma chamada de atenção à sua cor, com notas de assombro e malícia, apenas confirma que há racismo em Portugal”, sublinha.

Pela história, pelo discurso comum, e pela composição da comunidade em Portugal, Hélder Amaral diz que deveria ser natural a existência de negros nos vários sectores da sociedade portuguesa. Relembra que países, como a Itália e a França, têm nos governos um reflexo mais coerente da sua sociedade.

“O racismo existe”. “De forma disfarçada e com vários graus”. “Dependendo da condição social e económica das pessoas”. São frases que levam o deputado a acrescentar que “há, pelo menos até agora, uma propositada ocultação dos poucos exemplos que vão sendo conhecidos”.

O vice-presidente da bancada parlamentar do CDS-PP percebe a dificuldade na abordagem do tema. E para ele, deve evitar-se sempre a promoção e incentivo de reacções menos positivas. Desejável será a abordagem natural da questão. Assim, insiste, a existência da cor de pele diferente “deve reflectir-se também nos órgãos representativos do povo”.

Frontalmente, assume-se contra a imposição de qualquer quota, seja por que motivo for. Só aceita ser avaliado pela capacidade – ou não – para o exercício de um cargo. “Felizmente, na minha actividade parlamentar assim tem sucedido”, conclui Hélder Amaral.

 

Mamadou Ba, dirigente do SOS-Racismo mamadou

«Maldita questão da raça»

Nasceu em Kolda, Senegal. Mamadou Ba tem 45 anos. Vive em Lisboa desde 1997. É licenciado em Língua e Cultura Portuguesa e é activista do Movimento SOS Racismo. Também é militante do Bloco de Esquerda.

No lado oposto da cor política de Hélder Amaral, está o activista do SOS-Racismo, que recorda o facto de – à excepção do CDS – nenhum partido ter tido um negro, ou uma negra, em lugares elegíveis nas listas para as últimas legislativas. Lembra a verdade dos factos: habitualmente, nos momentos de confrontação política e de afirmação da diversidade, no espaço público e no combate político, os negros e as negras desaparecem de cena em quase todas as contendas eleitorais.

Por que motivo, nas legislativas, autárquicas, e europeias, nenhum partido de esquerda ou de direita quis “arriscar” em candidatos negros para lugares directamente elegíveis? Esta é a pergunta determinante para Mamadou Ba. Sem querer desvalorizar a nomeação da Van Dunem, entende que o mais difícil seria impor a colocação de um cidadão negro (num lugar cimeiro) para disputar a eleição para um órgão deliberativo e de representação. “Porque será?”, questiona.

“Evidentemente que também festejo!”, confessa o activista. Mas, exige vincar a ideia de que o tempo da celebração não pode colidir com a “assumpção da existência do racismo na sociedade portuguesa”. “Há que festejar para recordar o caminho percorrido e, sobretudo, lembrar o muito que ainda falta por percorrer”, refere.

 

“Contra a negrofobia e a ciganofobia”

mamadou3Mamadou Ba exalta também o gesto simbólico da nomeação de Carlos Miguel para secretário de Estado das Autarquias. O político de 58 anos, licenciado em Direito, esteve à frente da câmara municipal de Torres Vedras desde 2004. Conhecido como o filho do “Carlos Cigano” é a escolha do governo de Costa para o ministério tutelado por Eduardo Cabrita. O importante é que quebre preconceitos e enfrente estigmas. “Tal como no caso de Francisca Van Dunem, também a nomeação de Carlos Miguel é um gesto muito simbólico, tendo em vista a ciganofobia estrutural da sociedade portuguesa”, acrescenta.

“O que fica em dúvida é saber se estas duas nomeações vão reflectir-se de forma transversal numa estratégia política global de combate contra as discriminações raciais”, alerta ainda.

Mamadou concorda com algumas das análises até agora feitas sobre o simbolismo das escolhas. Ainda assim, diz, a explicação para “toda esta histeria” em torno do assunto “é a quase simetria entre privilégio branco e privilégio doutrinário, ou seja, a maldita questão da raça!”. Adianta: “O enfoque e a celebração em torno da nomeação da Van Dunem são reveladores de algo muito profundo que é preciso encarar com bastante lucidez e muita coragem”. Para o dirigente do SOS-Racismo, urgente é a implementação de uma política global “contra a negrofobia e a ciganofobia”.

Ao criticar a ausência da diversidade étnica na representação política, lança o desafio: “Resta dizer ao BE e ao PCP que continuar a esconder a quase simetria entre privilégio branco e privilégio doutrinário para desvalorizar a dimensão ‘raça’ nos seus eixos programáticos, é um colossal erro!”.

 

Van Dunem e o racismo

Quinta-feira. 26 de Novembro. 2015. Francisca Van Dunem tomou posse como ministra da Justiça. Nasceu em Luanda. Tem 60 anos. E é a primeira mulher negra a ocupar a pasta de governante num Executivo português.

XXI_1A ex-Procuradora-geral adjunta (casada com o advogado e professor catedrático Eduardo Paz Ferreira) conhece o Ministério Público há décadas. Passou também pelo conselho de administração do Observatório Europeu do Racismo e da Xenofobia e já assumiu que a cor da pele nunca foi obstáculo na sua carreira.

Discreta e reservada, sempre recusou o estrelato de figura pública. Características que não a deixam desmentir que existe racismo no país. Um dia, depois da escola dos filhos, aconselhou-os que gritassem. Por quê? Por que tinham sido alvo de discriminação nas brincadeiras. O motivo? Simplesmente porque a cor da pele era negra.

Há pouco mais de dez anos, chegou a confessar numa entrevista ao Público, que faltava a abordagem franca da questão e o investimento na componente educacional. “No discurso político, a questão racial continua a ser tabu, manifestamente”.

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